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Mensagens

Outro que tal

Por mais mais voltas que dê, não consigo descrever Franz Polzer. Posso arrumá-lo na secção pobres diabos , sim, mas tem de ficar num quarto incomunicável porque essa categoria não permite nem diálogo nem irmandade. Tudo o que pode ser dito sobre Polzer, está escrito n’ Os Mutilados — o resto são interpretações de segunda, discursos frágeis, variações menores. O grande passo da literatura é a capacidade de transformar palavras e personagens, coisas intangíveis por natureza, em objectos únicos. Uma obra literária é como uma árvore ou uma pedra — guarda o mesmo mistério. Não se deixa apanhar.

Vanidade

Não é preciso um curso completo, mas seria muito útil estudar algumas palavras alemãs. Para começar, sugiro Eigenschaften . É que já chateia ouvir chamar a este e àquele “homem sem qualidades” querendo dizer que ele é má rês (uma expressão portuguesa formidável que caiu em desuso e não se compreende porquê dada a quantidade de patifes sempre disponíveis para adjectivar). Assim, em vez de parecerem ilustrados como querem tanto parecer, vê-se logo que não leram o livro de Robert Musil ou, pior ainda, leram e não perceberam patavina. Um homem sem qualidades é feito de qualidades sem homem . Pobre Ulrich tão cheio de qualidades e tão falho de homem. Vá, desandem, deixem-no em paz.

O vaso de louça chinesa

Nenhuma moral, por mais firme que seja, pode manter-se intacta se cair com estrondo no chão, como uma peça de louça chinesa. Um vaso Song muito raro transforma-se prontamente num monte de cacos.

O risco de morrer de competência

(...) Uma escola mais difusa, resultante de uma mistura destes processos, é analisada num dos livros mais interessantes dos últimos anos sobre história e produção literária: "The Program Era", de Mark McGurl — sobre o impacto dos programas universitários de escrita criativa na ficção americana do pós-Guerra. Um dos efeitos desse regime, simultaneamente descritivo e prescritivo, foi a elevação da pura técnica a telos, e a consolidação de um conjunto de princípios didácticos numa doutrina de composição: o estilo "Hemingway-light" que dominou parte significativa da literatura dos Estados Unidos — principalmente no conto — a partir da década de 1950, e que permitiu a centenas de pessoas construir uma carreira a escrever como Raymond Carver ou (num caso em concreto) a ser Raymond Carver. O modelo será mais ou menos familiar. Relações problemáticas ou terminais. Uma casa nos subúrbios dos subúrbios. O marido (Hank ou Herb) a beber no sofá, atormentadamente. A mulher (Ji

Despedida

Da mesa do café, observo o casal na esquina da Constituição com Faria Guimarães. Têm à volta de cinquenta. Um pouco mais, talvez. Despedem-se com um beijo e um breve toque de mãos. Ela sobe a Constituição, ele espera que o semáforo passe a verde para descer Faria Guimarães. Antes de atravessar a rua, ele lança ainda um olhar na direcção dela, e quase consigo ouvir a pergunta a ressoar dentro da sua cabeça. A velha pergunta. A terrível pergunta: «Será que é a última vez que a vejo?»

Isto dito, continuar

Quando nos damos conta, é sempre demasiado tarde. Adiamos a carta, a mensagem, o telefonema, o encontro, hoje, amanhã, depois de amanhã, uma e outra vez. Por pudor, por incúria, por preguiça, por pura cobardia. Há mil razões para adiar um encontro e todas estão erradas. Não há desculpa. E, no entanto, deixamos o tempo construir a sua diabólica obra. A negra e lenta teia. E assobiamos para o lado, ou melhor, para dentro. Eu devia ter ligado ao Luís Mourão. Devia ter escrito. Devia ter ido ao seu encontro. Agora é demasiado tarde. Restam as palavras e os livros, e é tão pouco. Resta-me a memória de alguns encontros, tão poucos, mas sempre inesquecíveis, a pretexto dos livros. Era um prazer ouvir o Luís Mourão falar dos livros e dos autores que lhe interessavam. Como os grandes mestres, tinha desenvolvido uma espécie de exercício de encantamento para seduzir o auditório. Do fundo de um bolso, retirava a chave e apresentava-a com prazer ao público. Depois, com um gesto largo e lento abri

Restos

Depois de pensar um bocado, escrevi esta frase: Expulso da literatura, é com os restos que Walser trabalha . É curto, mas até não está mau; quer dizer, é pouco mas é um alicerce concreto. Agora é preciso dar margem à palavra restos (nota: procurar umas coisas que Manoel de Oliveira disse sobre o filme Party ) e construir uma tese. Mas isso já não me apetece fazer — gosto de projectos inacabados.

Território espiritual

A maior parte das vezes também penso que não deveríamos dizer nada sobre Robert Walser — uma gentil retribuição da nossa parte. Mas somos sempre tentados, ah! descobrir uma palavra particular, uma frase, uma imagem que nunca ninguém viu e que se aproxime da doçura e da crueldade e que tenha profundidade não saindo do mais rasteiro e por aí fora no desvario. Acabamos afogados (João César Monteiro, por exemplo, afogou-se na escuridão e na humidade com extrema verticalidade), mas isso também não é mau. Porque em Walser é sempre tudo bom e alegre, mesmo quando choramos. Principalmente quando choramos.

Algumas traduções de Robert Walser

Da experiência do blogue anterior, aquilo que mais gostei de fazer foi traduzir. Walser, Cage, Panero, Michaux, Cioran. Pôr-me na sombra ou sob alçada é um descanso e ao mesmo tempo uma luta inquieta. Às vezes penso que devia ter seguido essa profissão, mas depois percebo que não é bem assim porque só gosto de traduzir o que gosto de ler (de preferência coisas curtas), porque sou muito lenta e faltam-me os estudos necessários (isso explica as imperfeições). Morreria à fome como a chinesa. Entre 2005 e 2006 traduzi seis textos e mais um resto de Walser a partir de versões inglesas. Vou agrupá-los aqui: A música A música é a coisa mais doce do mundo. Adoro notas musicais. Correria mil léguas só para ouvir uma. Muitas vezes, no Verão, quando passeio pelas ruas e ouço o som de um piano vindo de uma casa desconhecida, paro, pronto a morrer ali mesmo. Gostava de morrer a ouvir um pouco de música. Imagino isso tão fácil, tão natural, mas claro que é impossível. As notas apunhalam-nos mu
O que impressiona sempre em A Regra do Jogo é a balbúrdia. Claro que Jean Renoir filma a balbúrdia com a sua habitual delicadeza e aquilo que caminha a grandes passos para o descalabro transforma-se num bailado com tutus. Mas se isso é o que nos encanta uma e outra vez por causa do ritmo musical e de qualquer coisa que não tem nome, depois de vários confrontos começamos a pensar em outros pormenores, por exemplo: talvez o mais importante do filme seja a forma como Renoir assinala os defeitos (muitos) e as virtudes (poucas) de todas as classes sociais — uma espécie de tiro de partida para um pensamento político radical.

Observações avulsas sobre a boavista #5

Comecei a sair na estação de Francos porque fica mais perto. Mas agora já não é uma questão de distância. Gosto daquele bocado de Tenente Valadim junto à linha que parece um beco e também a saída de operários da fábrica. Gosto da mercearia a meio que vendes sandes e cafés de cápsula aos trabalhadores da Altice como se fosse uma venda dos arredores. Depois do cruzamento com João de Deus, gosto das árvores: na esquina, a ameixoeira de folhas castanho avermelhado, carregada de frutos minúsculos; os bordos japoneses que ladeiam a porta do BPI e crescem inclinados; mais adiante, dois choupos quase tão altos como o Sheraton; ao chegar à avenida da Boavista, o jacarandá em flor.
"I’m glad I’m up here seeing these ancient rivers of ice before they disappear."  People definitely say that. — Hum? De certeza que isto não é um conto de George Saunders?

O princípio da troca de Locard

Aborrece-me esta exaltação tão magnânima sobre a morte de Agustina Bessa-Luís. Geralmente isto significa que vai haver muito falatório e pouca leitura. Transformar um escritor em herói da pátria é sempre má ideia. Por outro lado, é muito cómico descobrir os tiques mais enfáticos da circunstância: os especialistas que se põem nas pontas dos pés tipo “eu é que sou o presidente da junta”; os que estão prestes, prestes, a dizer “Agustina Bessa-Luís sou eu”; e ainda os mais sofisticados que aplicam cientificamente o princípio da troca de Locard com o mindinho: através do contacto entre dois items, irá haver uma permuta .

O Fausto de Meyrink

« Tirando as lunetas, viu diante de si um homem nu, que só trazia uma pele de animal em torno dos rins; uma personagem de alta estatura, de pele morena, espantosamente magro, que tinha colocada na cabeça uma mitra negra, sobre a qual se acendiam partículas de ouro. O médico da Corte percebeu imediatamente que se tratava de Lúcifer , mas não se sentiu nada surpreendido, porquanto, intimamente, havia já muito tempo que esperava por aquela aparição. - Tu és o homem que pode realizar todos os desejos? - perguntou-lhe, inclinando-se voluntariamente. - Podes também...? - Sim, eu sou o deus em cujas mãos os homens entregam os seus desejos - interrompeu o fantasma, indicando a pele que lhe cingia os rins. - Entre todos os deuses, sou o único que usa cinto: os outros são assexuados. Só eu posso compreender os desejos. Aquele que é verdadeiramente assexuado esqueceu para sempre o que são desejos. A mais profunda raiz de todo o desejo, seja ele qual for, raiz impossível de descobrir, repousa

Este quadro é um prazer para os olhos

Mãos. Carantonhas (na mesa e cadeira). Taça com abóbora, maçãs, flores e folhas. Gansos. Chapéus extraordinários. Todos estes elementos dão ao quadro um ambiente tão festivo e alegre que, em vez de uma cena religiosa, diria que estamos a ver um musical. Mais uns segundos e começam todos a dançar e a cantar.

Dilema literário

— Será aceitável levar Vassili Grossman para a praia? Nem por isso. O céu azul, o mar calmo, uma brisa suave — é demasiado, toma a proporção de uma afronta. Como quando Ivan Grigorievitch entra em casa de Nikolai Andréevitch: A cara escura e enrugada do homem do reino prisional, o seu casaco acolchoado, as suas botas de soldado que pisavam desajeitadamente o soalho não condiziam com o mundo de parquê, de armários de livros, de quadros, de lustres.

Disposições morais

Voltamos sempre, ou pelo menos eu volto muitas vezes, à cena final d’ O Carteirista . Talvez seja mesmo assim, talvez seja preciso tempo e caminhos estranhos para chegar onde sempre estivemos, uma espécie de andar sem sair do sítio. Nem todos os problemas pedem uma resposta, mas sim uma disposição.