Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Nem te espera no negro crepúsculo uma fera

Antestreia de "Vitalina Varela" de Pedro Costa, com a presença do realizador e seguida de debate com o público, moderado por Daniel Ribas. Hoje, às 19:00, no cinema Trindade.

É veneno!

Os filmes do Pedro Costa dão luta, podemos andar dias, meses, anos, a remoer em certos planos ou até mesmo em pormenores; uma palavra gritada, uma cruz que se apanha do chão. É tudo muito lúgubre, muito rico, muito condensado, muito misterioso. Trabalhamos sobre possibilidades ambíguas. Tentamos construir hipóteses de caminho. Com sorte, descobrimos que o céu é debaixo da terra. Quando Vitalina sobe ao telhado, lembra as mulheres dos filmes Ford — Maureen O’Hara com os cabelos e têmpera do fogo. Essa é a primeira impressão. O reconhecimento de uma ligação dá algum consolo, mas depressa se esvai a segurança. O que o plano tem de vigoroso não é cinéfilo nem alivia. É no sentido contrário, por isso é preciso continuar a procurar mais fundo a origem da inquietação. Talvez a tensão extraordinária dessa imagem venha do método de trabalho, do modo como a câmara responde a Vitalina. Como se todas as questões técnicas — ângulo, enquadramento, luz, sombra, vento — representassem o mesmo des

O que é que isto quer dizer?

Não é fácil escrever sobre “Vitalina Varela”. Mas em vez de debitarem frases imbecis (“Visão arrebatadora e magistral entre o horror e o melodrama, a espiritualidade e o desespero.” / “Um retrato da natureza consumidora do amor e da beleza da solidariedade feminina.”) , talvez fosse preferível os júris dos festivais atribuírem os prémios com um simples agradecimento.

Golpe de raio

Quando escrevi sobre “Vitalina Varela” não consegui dizer nada sobre o plano em que ela sobe ao telhado. Há imagens assim; mais do que significados, têm uma energia que nos deixa a ferver por dentro e sem coragem para dar um passo. Ainda não desisti.
Com a pompa habitual das empresas tecnológicas, a Google anunciou que atingiu a  supremacia quântica . Não é necessário tanto alvoroço por causa de bits que são zeros e uns ao mesmo tempo. Avisem quando o Sycamore conseguir escrever um limerick que nos faça rir.
Na wikipédia há uma série de possibilidades de desambiguação para quântico . Esqueceram-se da poesia: De novo amo e não amo, / Estou doido e não estou doido. Anacreonte , tradução de Frederico Lourenço, "Poesia Grega de Álcman a Teócrito, Cotovia.

A chave do texto

Pensar com as mãos (take 2)

Jerónimo de Sousa é o político que melhor se relaciona com as palavras. Usa-as para exprimir pensamentos e não para exercícios de comunicação. Quando diz:  não sabia fazer uma lei, mas sabia o que era fazer uma greve, ser despedido sem justa causa por motivos político-ideológicos, vir do Sindicato dos Metalúrgicos e da Comissão de Trabalhadores da empresa e falar de liberdade sindical e dos direitos, do valor da Contratação Colectiva e do combate à discriminação salarial das mulheres. Percebemos que os seus pensamentos correspondem a uma prática. Se nos concentramos bastante, conseguimos ver o passo da história. E aquilo a que Godard chama pensar com as mãos?

Observações avulsas sobre a boavista #14

O google maps guarda um mundo ainda recente mas que já não existe. Passo aqui todos os dias. O Hiva Oa (polinesian bar) fechou e foi substituído pelo D’Avenida (Fine Dining & Clubbing). Quando fizeram as obras, cortaram o salgueiro. Fotografia: google maps, abril de 2018.

Observações avulsas sobre a boavista #13

Quase em frente ao baldio, na rua Azevedo Coutinho, há uma empena com três janelas e persianas ao nível do rés-do-chão. Uma empena é uma parede lateral sem aberturas, preparada para receber outro edifício encostado. Também é costume dizer que é uma parede cega, mas esta não, esta é claustrofóbica. Fotografia do google maps, julho de 2014.

Observações avulsas sobre a boavista #12

O caminho de terra batida junto ao muro do edifício Burgo (às vezes pára lá ao fundo uma carrinha para vender qualquer coisa, talvez fruta e legumes). O bairro Bessa Leite com roupa a secar à janela. E o baldio onde agora cresce milho e se estende até ao acesso à VCI. Todo esse espaço corresponde ao território dos cães e coscorões de Tati. Fotografia da google maps, abril de 2018.

Mummlius Spicer

Encostado à janela, examinou as nossas cartas de recomendação com um cuidado extremo. Adivinhava-se-lhe a profissão pela maneira como manuseava os papéis. Os financeiros lêem com mais atenção do que os bibliófilos; conhecem melhor do que estes os inconvenientes que podem resultar de uma leitura demasiado apressada. Bertold Brecht, “ Os negócios do Senhor Júlio César”, tradução de A. Ramos Rosa e Ana Maria Marques de Almeida, Portugália Editora.

Apenas um homem

O título da peça de Shakespeare é «A Tragédia de Júlio César». A companhia , porém, optou por rasurar « A Tragédia de ». O que permanece visível no título é o nome de César: « A Tragédia de Júlio César.» Um nome isolado, solitário, terrivelmente exposto. Um peso descomunal abate-se pois sobre ele, quando na verdade César é apenas mais um homem, um caso, um nome riscado da superfície da história. O que permanece é «A Tragédia», mil vezes repetida, tantas quantas as mulheres e homens que alguma vez puseram os pés neste mundo. Tragédia é sinónimo de César, Cássio, Bruto e de todos os nomes conhecidos e desconhecidos, de «países por nascer e línguas ainda ignoradas». E é exactamente por isso que esta opção é tão notável. As palavras que se tenta esconder sob um risco ou o corte de uma lâmina gritam mais do que quaisquer outras. Esconder é tentar mostrar melhor. César é apenas um homem, a tragédia é de todos.
Cuidado. Piso escorregadio . Podia ser o título de um manual de filosofia. Se os filósofos frequentassem superfícies comerciais .

Influenciadores do século XX

Economia circular

Em  Oráculo Manual y Arte de Prudencia,  o escritor jesuíta Baltasar Gracián aperfeiçoou o que chamou de agudeza : um tipo de dito de espírito em que o máximo de significado é compactado no mínimo de forma ou estilo.  Brian Dillon, Essayism: On Form, Feeling, and Nonfiction   The Art of Wordly Wisdom: A Pocket Oracle chegou a vender mais de cento e cinquenta mil exemplares ao ser apresentado como um manual de auto-ajuda para executivos. Em 1992, permaneceu dezoito semanas (duas nas primeiras posições) na lista dos mais vendidos, segundo o jornal  The Washington Post .  Wikipédia

Fuga

O vento frio lança os ramos do plátano contra o vidro. A velha árvore parece querer abrigar-se, folha a folha, dentro do escritório. Mas talvez não seja isso. Talvez seja o contrário: um convite desesperado para sairmos e escaparmos de vez ao triste clima temperado dos gabinetes.

Humano, demasiado humano.

Cioran já andava pelos setenta anos quando se apaixonou por uma jovem professora de filosofia. Friedgard Thoma escreveu-lhe uma carta elogiosa comparando-o a Büchner e Walser. Depois enviou-lhe uma fotografia. Começaram a trocar correspondência. Encontrei  aqui  parte da história e este excerto:  “Consigo gostaria de falar sobre Lenz na cama. Lástima que não viva sozinha e aqui perto. A alegria de a ter conhecido é uma prova e também um golpe. Gostaria de terminar com um aforismo irónico, mas não posso." Não me interessa saber mais sobre o devaneio amoroso. Cioran entrou na filosofia pelo curral. Um afilhado de Dionísio que praticou a sátira e a ironia como poucos. Usou-as para defesa e ataque; em relação às coisas grandes, às coisas pequenas e a si mesmo. Custa-me vê-lo velho, incapaz de escrever um aforismo irónico quando mais precisava. Demasiado preso a si, sem qualquer ponto de fuga, sem riso, sem alívio. Como todos nós. Como Minetti com os atilhos das ceroulas desapertados

Fora de água

Todos os dias, atravesso o rio para trabalhar. Que peixes, que fantasmas, que monstros se escondem sob as águas? Toda a escrita é uma tentativa de decifração. Mil vezes empreendida, mil vezes falhada. Mas é a única maneira de não nos afundarmos no vazio. De continuarmos a respirar fora de água.