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Apenas um homem

O título da peça de Shakespeare é «A Tragédia de Júlio César». A companhia, porém, optou por rasurar «A Tragédia de». O que permanece visível no título é o nome de César: «A Tragédia de Júlio César.» Um nome isolado, solitário, terrivelmente exposto. Um peso descomunal abate-se pois sobre ele, quando na verdade César é apenas mais um homem, um caso, um nome riscado da superfície da história. O que permanece é «A Tragédia», mil vezes repetida, tantas quantas as mulheres e homens que alguma vez puseram os pés neste mundo. Tragédia é sinónimo de César, Cássio, Bruto e de todos os nomes conhecidos e desconhecidos, de «países por nascer e línguas ainda ignoradas». E é exactamente por isso que esta opção é tão notável. As palavras que se tenta esconder sob um risco ou o corte de uma lâmina gritam mais do que quaisquer outras. Esconder é tentar mostrar melhor. César é apenas um homem, a tragédia é de todos.


Comentários

c disse…
Olha, descobri este texto magnífico do Luís Miguel Cintra:

http://www.teatro-cornucopia.pt/htmls/conteudos/EEZAkuVFZkDEFgubwE.shtml

Sim, é exactamente isso.

A dada altura, o LMC diz isto: "Sempre me repugnaram as transposições dos clássicos para a nossa época, que me parecem reduzir a sua complexidade de textos antigos, sem respeito pela nossa inteligência e consciência histórica." Sou muito sensível a este argumento. Tendo a concordar com ele. Mas esta encenação parece-me que foge à regra e acrescenta mais qualquer coisa justa a Shakespeare. Há pensamento. Há ideias e não apenas o desejo bacoco de dar um brilho "moderno", qualquer coisa vagamente inspirada na cultura pop televisiva, como acontece na maioria das "transposições dos clássicos para a nossa época".

E a propósito disso mesmo, o final do texto é de antologia: "Não fazemos os clássicos para chamar público nem para lhe dar “Cultura”. Este texto (...) ajuda a matar o egoísmo e confronta-nos com a nossa própria responsabilidade na vida da Cidade. Alimenta talvez o nosso desespero."