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Desde que o samba é samba é assim

Há uma história da Laurie Anderson sobre Thomas Pynchon muito engraçada. Ela queria fazer uma ópera baseada em Gravity’s Rainbow. Ele concordou, desde que a peça fosse escrita apenas para banjo. Parece uma história zen — quer dizer, tem o mesmo tipo de humor e leveza. Para além do divertimento de juntar Laurie Anderson e banjo na mesma circunstância, o raciocínio de Pynchon com recurso a locução subordinativa condicional é muito útil. Por exemplo, esta vontade das entidades patronais medirem a temperatura dos trabalhadores. Porque não? Desde que seja no cu.
Entretanto passou-me pela cabeça uma ligação (ainda mais) disparatada: Flannery O’Connor e os bonequinhos de South Park? Sem os vómitos, claro. Pesquisei no Google. Esta afirmação cautelosa prova que a literatura já foi toda esquadrinhada: There's some “South Park” in Flannery O'Connor, but she made fun of everything. CENA 1 — Do the handicapped go to hell? — The lame shall enter first! [into the kingdom of heaven] CENA 2 — Go back to hell where you came from, you old wart hog. ( Said Mary Grace to Mrs. Turpin ). — Yeah! Não vale a pena desenvolver mais, vou para a cama ler outra vez “Revelação” — a ver se tenho sonhos interessantes com porcos. Ou uma epifania do género.

Influencers

Parece-me que as coisas finalmente começam a acalmar um pouco. As boas almas dos jornais, os grandes educadores televisivos do povo, os influencers de facebook, já desistiram, pelo menos em parte, de nos aconselhar enxurradas de livros, filmes ou peças de teatro online para «passar melhor o tempo em casa». Não é justo para Kurosawa, mas quando penso nestes bons «conselheiros», a imagem que me ocorre é a de Yuzo, personagem de «Um domingo maravilhoso», a dirigir a «Sinfonia Inacabada», de Schubert, diante de uma orquestra silenciosa de músicos invisíveis, num anfiteatro vazio. Não, não é justo para Kurosawa.

Tenho a certeza de que os escreveu bêbado

(...) O que me leva ao assunto embaraçoso do que não li e não me influenciou. Espero que nunca ninguém me pergunte isso em público. Se o fizerem, tenciono parecer misteriosa e murmurar "Henry James Henry James" — que seria a mais completa mentira, mas não importa. Não fui influenciada pelos melhores. As únicas coisas boas que li quando era criança foram os mitos gregos e romanos que saquei de uma colecção de enciclopédias infantis chamada “O Livro do Conhecimento”. O resto era uma Lavagem com L maiúsculo. O período Lavagem foi seguido pelo período Edgar Allen Poe que durou anos e consistiu principalmente num volume chamado “Os Contos Humerísticos de E.A. Poe”. Eram extremamente humerísticos — um era sobre um jovem demasiado vaidoso para usar óculos, por causa disso casou-se, sem querer, com a sua avó; outro era sobre uma bela figura de homem que no seu quarto tirava os braços de madeira, as pernas de madeira, a peruca, os dentes postiços, a prótese fonatória, etc.; outro sob

In the face of a purifying terror

“O Calafrio Permanente” (The Enduring Chill) parece o título de um conto de Edgar Allan Poe. Mas as semelhanças não se ficam por aí. O catolicismo de Flannery O’Connor é tremendo e prolonga-se para além do fim — como nas histórias de terror de Poe. O Espírito Santo que assusta Asbury no último parágrafo é tão terrível como a figura humana enorme e branca como a neve que encerra as “Aventuras de Arthur Gordon Pym”. Flannery O’Connor obriga a palavra “salvação” a fazer triplos mortais consecutivos. (...) It was then that he felt the beginning of a chill, a chill so peculiar, so light, that it was like a warm ripple across a deeper sea of cold. His breath came short. The fierce bird which through the years of his childhood and the days of his illness had been poised over his head, waiting mysteriously, appeared all at once to be in motion. Asbury blanched and the last film of illusion was torn as if by a whirlwind from his eyes. He saw that for the rest of his days, frail, racked, bu

Obras para quê?

Vale Formoso, Antero de Quental, Largo da Lapa, Regeneração. A Utopia já reabriu, mas não há livros novos na montra. Aceno a um Herculano mascarado. Ele devolve o cumprimento. Há um vidro entre nós. Praça da República. Alguém escreveu sobre um aviso camarário de obras a frase «Obras para quê?» A interrogação, neste momento, parece ser válida para tudo: arte, literatura e construção civil. Rua do Almada, Ricardo Jorge, Largo do Mompilher. As sapatilhas estão velhas e fazem-me doer os pés. Rua da Conceição, Mártires da Liberdade. A Académica continua fechada. Praça da República, Rua da Lapa. A velha caixa de esmolas da Capela do Senhor do Olho Vivo foi assaltada. Tentaram arrancar a caixa da parede, mas as moedas não saíram do sítio. Antero de Quental, Vale Formoso. A tinta verde da porta da rua está a descascar. Há ferrugem na fechadura. Dores nas pernas e nas costas.

Não sei resumir-me

- Que pretendeu então exprimir com as suas interrogações? - Pois bem, para aqueles que nunca me leram, e são muitos, quis exprimir o desconforto da existência, a separação do homem das suas raízes transcendentais; quis exprimir igualmente que, mesmo enquanto falavam, os homens não sabiam o que queriam dizer e que falavam para não dizer nada, que a linguagem, em vez de os aproximar uns dos outros, não faz senão separá-los ainda mais; quis traduzir o carácter insólito da nossa existência; quis parodiar o teatro, isto é, o mundo, e o que escrevi foi em parte, evidentemente, uma paródia, talvez mesmo a paródia da paródia; enfim, que quer que lhe diga, quis dizer o que quis dizer e, umas vezes bem, outras vezes mal, disse-o, e muitas outras coisas ainda que estão nos meus livros. Como vê, não sei resumir-me. Eugène Ionesco, numa entrevista publicada como apêndice a O Solitário . Tradução de Luiza Neto Jorge.

Ontem

Talvez tenha sido o dia mais quente do ano. Cheirava a Verão. Decidimos sair um pouco para apanhar sol e desentorpecer as pernas. Na rua, as pessoas afastavam-se umas das outras com um silêncio envergonhado, que dissimulavam atrás das máscaras. Um saco do lixo descia a Lapa aos saltos, entre duas gaivotas enlouquecidas.
Os caras destapadas Podia ser o nome de um movimento de contestação ou até mesmo de coisas mais perigosas. Nada disso, apenas andam pelas ruas, entram nas lojas e nos autocarros sem máscara.

Milledgeville, Geórgia.

Flannery fez vários convites para que Elizabeth a visitasse na propriedade rural "a algumas milhas de Milledgeville". A poeta nunca foi.  Em uma carta posterior, enviada a Robert Giroux, ela lamenta não tê-la visitado, para depois confessar, entre parênteses: "Acho que eu tinha "medo" da Flannery!".

Cerejas

Chegaram as cerejas. Na frutaria da minha rua, havia ontem três ou quatro caixas. O preço ainda é proibitivo, mas é o mais próximo que se pode desejar de um verdadeiro regresso à normalidade.

Agora já nem as doenças excitam a literatura

Os contos são sempre escritos com uma certa urgência, mas no caso de Flannery O’Connor o modo vai além do que é habitual. A pressão descamba logo em carácter premente: nada pode esperar nem um segundo. Cada história conserva as necessidades imediatas da adolescência e o fervor de uma ambulância. A correria vem, não tenho dúvidas, do avanço ineludível e restritivo da doença de Flannery O’Connor. É o lúpus eritematoso que a obriga a apressar-se e também, talvez, a ser tão concentrada e desmedida em tudo. As doenças funcionam muitas vezes como um estimulante da literatura. Bom, creio que isto só era válido no passado. Agora já nem as doenças excitam a literatura.

Pai

O meu pai faz hoje 80 anos. Agora não tenho tempo para contar a história da vida do meu pai, mas posso pelo menos dizer que é um digno representante da velha classe trabalhadora. Reformou-se tarde e continuaria a trabalhar se lho tivessem deixado. Como tantos outros, nunca soube o que fazer ao «tempo livre». Se um homem nasce é para trabalhar. É uma questão de honra, dignidade, enfim, de respeito. Hoje, 1.º de Maio, é o dia dele, o dia do velho trabalhador. Devíamos estar juntos, como sempre aconteceu neste dia, mas o vírus fechou-nos em casa. Sem bolo, sem velas, sem bandeiras vermelhas.

Öffnungsdiskussionsorgien

Queria continuar a ruminar umas frases sobre os contos de Flannery O’Connor (depois dos intelectuais — tão atrasados — ainda um textinho de ocasião sobre ambulâncias), mas a realidade mete-se no caminho. A propósito do desconfinamento, Angela Merkel criou uma bela palavra:  Öffnungsdiskussionsorgien . Estas palavras frásicas alemãs são tão grandes que podemos analisá-las como se fossem imagens. Como uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho.

Mais actividades lúdicas

Sempre considerei a “escrita feminina” um conceito literário parvo e sem interesse. Mas agora que ando a reler — muito devagar, nunca mais do que um por dia — os contos tardios da Flannery O’Connor, resolvi reabilitá-lo por algum tempo. Uma técnica de provocação que aprendi ontem com Rufus Johnson.

Máscara

Os jornais dão conta de que o uso de máscara vai ser obrigatório em múltiplas situações. É impossível não pensar no teatro. De um momento para o outro, somos forçados a usar máscara para continuar a desempenhar o nosso papel na grande representação do mundo. O teatro já não imita a vida. É a vida que imita o teatro. DUQUE SÉNIOR Bem vês que não estamos sós no infortúnio: Este teatro imenso e universal Tem representações mais lastimáveis que a cena Em que entramos. JAQUES O mundo é um palco E todos os homens e mulheres simples actores: Têm as suas saídas e entradas, E, em vida, um só homem tem vários papéis (...). Shakespeare, Como vos aprouver. Tradução de Fátima Vieira.

Estado de excepção

Prolongar a “Memória e Esquecimento”, adiar a “Velocidade, Aceleração”. A revista Electra está a comportar-se à altura das circunstâncias.