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O que a pele de leão deixava a descoberto

As nádegas de Héracles eram como um velho escudo de couro, enegrecidas pela longa exposição ao sol e pelo hálito ardente de Caco e do touro cretense. Quando Héracles capturou os dois escarninhos Cércopes, que vinham para o roubar e para lhe tirar o sono, disfarçados de importunos moscardos, depois de os ter obrigado a reassumir uma forma humana, pendurou-os pelos pés a uma trave e, como os seus pesos se equilibravam, colocou a trave sobre os seus ombros. A cabeça dos dois minúsculos patifes pendia à altura das nádegas possantes do herói, que a pele de leão deixava a descoberto. Então os Cércopes recordaram-se das palavras pressagas de sua mãe: «Meus pequenos Cus Brancos, tende cuidado com o momento em que vos encontrardes com o Cu Negro». Os dois ladrões pendurados foram sacudidos pelo riso, enquanto as nádegas do herói continuavam a subir e a descer na sua marcha segura. Enquanto ia andando, o herói sentia atrás de si aquele riso sufocado. Sentia-se triste. Nem as suas vítimas o leva

Lama

Fomos ver O Grito , de Antonioni. O filme foi feito com personagens e lama. Tal como o desespero é uma expressão do pensamento e do corpo, a lama é uma mistura de água e terra. Não há nada verdadeiramente sólido nem apenas líquido no filme. As personagens escorregam pela tela. Ou melhor, deixam-se escorregar. Como se escorregar fosse a sua condição. Leio na folha de sala que, na época em que realizou o filme, Antonioni «atravessava uma grave crise de depressão».

Observações avulsas sobre a boavista #35

Quando passo pelos miúdos que trabalham na Euronext, sinto-me como uma mineira que vai perder o emprego em breve por obsolescência. Mas não como no filme do Ford; uma mineira contemporânea que está pronta a pôr em prática — de viés, sempre de viés — o conceito chinês de tang ping (bolas, uma coisa tão importante e não tem página em português na Wikipédia).

Observações avulsas sobre a boavista #34

Ai Weiwei até pode não ser um artista notável, mas é um provocador bastante activo. A imagem de “Entrelaçar” (ele nu entre melancias, ananases, bananas, tomates e outros frutos), que está nas bandeirolas à entrada da Marechal, perturba a compostura burguesa da zona e isso é sempre digno de apreço.

Influenciadores do século XX

Juízos à posteriori

Uma das vantagens de trabalhar em casa é poder estar sempre descalça. É difícil incluir esse direito na luta dos trabalhadores por condições laborais mais justas. A única hipótese era encarregar Cossery de escrever as exigências. — Sim, ele seria capaz de corroer o próprio conceito de trabalho (alegria extrema).

Selfie II

Quando renovei o cartão de cidadão, a fotografia (que já era má) transformou-se num borrão negro — assusto-me sempre que a vejo. Pelo contrário, a fotografia da carta de condução é muito divertida, pareço alguém (distante) que já fez parte de uma banda (punk progressista?) e agora come cenouras. Nunca pensei que o sistema burocrático do estado pudesse alcançar revelações deste tipo.
Onde vamos livres Onde vamos presos correr como rios durar como pedras e lançar raízes  António Reis, poemas quotidianos (edição da Tinta da China).
 

Gente palradora

Conta-se esta história a propósito de Arnold Böcklin, seu filho Carlo e Gottfried Keller: um dia estavam na taberna, como habitualmente. As suas libações eram conhecidas desde longa data pelo carácter fechado e taciturno dos convivas: uma vez mais encontravam-se calados. Após um longo momento, o jovem Böcklin observou: «Está calor», e um quarto de hora depois, o velho: «Há falta de ar.» Keller, pelo seu lado, esperou um momento; a seguir levantou-se, proferindo as seguintes palavras: «Não quero beber com gente tão palradora.» Walter Benjamin, a propósito de Robert Walser.

Estilo para os literatos

Falam do meu “estilo”. Mas o meu estilo não me interessa rigorosamente nada. Tenho qualquer coisa para dizer, digo-a, e é o que digo que conta; a maneira de o dizer é secundária. O ideal seria escrever sem estilo; esforço-me e hei-de lá chegar. Só o pensamento importa. O resto é para os literatos. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972
Tenho oitenta páginas de notas sobre o politeísmo. Mas para fazer delas um artigo, é preciso um impulso que me falta. Adoro os esboços, a preparação, os trabalhos de aproximação. Não me peçam mais!  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972