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Mensagens

Rentrée

Sou e mereço ser esquecido. Há um limite para a indolência. Só tenho dois prazeres, não mais que dois interesses: ler e comer. Um animal-leitor, uma besta com livros. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Avarias

Tenho sentido umas tonturas estranhas. No Centro de Saúde, a médica prescreveu-me uma TAC de Crânio para «despistar qualquer problema». Fui fazer o exame. A máquina da TAC avariou no exacto momento em que estava deitado e com a cabeça no interior daquele enorme círculo de metal e radiação. O técnico lamentou, disse que o exame tinha de ser adiado e que entretanto iam chamar o serviço de assistência para «despistar qualquer problema».

cette vie dont j’avais soif

Cioran escreve muitas vezes sobre Teresa de Ávila nos seus Cadernos . Começo a compreender o encanto; aliás, é melhor dizer feitiço .  Ela é uma mulher devota a Deus, mas com um misticismo fogoso — a imagem corporal que se insinua na nossa cabeça para dizer aquelas coisas intensas é de uma actriz de Hollywood dos anos 50. Je me voyais mourir du désir de voir Dieu et je ne savais où je devais chercher cette vie dont j’avais soif, si ce n’est dans la mort même . Nota: será que Bénard da Costa escreveu sobre isto? É um tema tão perversamente bénardiano (ou será buñueliano?).

Pensamentos de dupla face

L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est un roseau pensant.  A frase de Pascal é tão boa que se pode ler nos dois sentidos; conforme o filósofo a escreveu, mas também na direção inversa, considerando a condição pensante do homem como axioma, e ser junco como vontade.  Podia ser um dos segredos da escrita — ou até mesmo da vida — de Walser.

Ficção Científica

Ontem, ao fim da tarde, uma nuvem cinzenta desceu fria e lentamente sobre o Porto como um avião colossal. Demos por nós atónitos, à janela, a olhar para o céu. Depois de várias semanas de sol e temperaturas tropicais, a nuvem assemelhou-se a um estranho episódio de ficção científica.

Outono no Porto

No fim-de-semana fui ver a paragem ao contrário na rua de São Dinis ; ri-me imenso. Hoje descobri que já tenho um desses equipamentos urbanos perto de casa (Barros Lima, sentido descendente) — que alegria!    Estas paragens são muito divertidas porque são uma aberração de gabinete; quer dizer, quem teve a ideia de as virar ao contrário (as justificações não colam) não anda na rua nem em transportes públicos, vive em ambiente condicionado.  Agora fico à espera que contratem os autocarros negativos de Boris Vian. Aliás, espero isso há tantos anos...

Sentir-se satisfeito

Em O Vestido Vermelho , de Stig Dagerman, um personagem descreve desta maneira o ramerrame de uma vida vazia, mole, pobre e mesquinha: Que é que julgas que significa viver, para ele? Nada mais que levantar-se de manhã, ler um jornal, tomar uma chávena de café, ir para a oficina, consertar uma mesa, voltar para casa, jantar, dormitar, escutar a telefonia, ir ao W.C., contar uma história das porcas, de preferência, sair, ir ao cinema, ir para a cama ou para o café, ver um filme, despir uma mulher ou beber uma cerveja, voltar para casa, despir-se, ressonar, acordar, tomar uma chávena de café, ler um jornal e ir para o trabalho. O pior ainda não é supor que viver seja isto, o pior numa vida destas é ele sentir-se satisfeito. O livro é de 1948. Hoje, parece a vida preenchida e sofisticada de um «intelectual» mais ou menos boémio, e que trabalha numa oficina para pagar as contas.

Noite de Talamanca

(...) O misticismo e o «desengano» constituem também o leitmotiv do Caderno de Talamanca , assim como a paixão pela música.  Este Caderno foi escrito durante o verão de 1966 em Talamanca, uma povoação situada na ilha de Ibiza. É o testemunho de uma crise, uma crise de tal intensidade, que nos  Cadernos posteriores será referida como Noite de Talamanca .  Verena von der Heyden‑Rynsch, prefácio a Caderno de Talamanca.

O vestido vermelho

Leio O Vestido Vermelho , do Dagerman, pela primeira vez. Há muito que tenho o livro na estante (tradução maravilhosa de Irene Lisboa, Estúdios Cor, 1958), mas por uma razão ou outra fui adiando a leitura. Não, não foi por uma razão ou outra. Sei muito bem porque adiei este encontro. É um livro perfeito, terrível. Metade papel, metade espelho. Mete medo.

Câmara de ecos

O mundo como uma gigantesca câmara de ecos ( whispering-gallery ). A imagem surge na página 390 de Middlemarch , de forma acidental — e é mais uma prova da efusiva modernidade de George Eliot. Até apetece transformá-la em conceito e desviar Eliot dos romances para áreas mais abstractas.

Energúmeno

(...) E num editorial do Trumpet , Keck qualificou o discurso de Ladislaw num comício sobre a Reforma como «um ultraje de energúmeno — uma miserável tentativa de ocultar com um fulgor de fogo-de-artifício a petulância de afirmações irresponsáveis e a pobreza de umas ideias tão novas quanto baratas».  — Aquilo é que foi uma tunda, Keck, o seu artigo de ontem — disse o Dr. Sprague, com intenções sarcásticas. — Mas o que é um energúmeno?  — Oh, é um termo que apareceu com a Revolução Francesa — disse Keck. Middlemarch, de George Eliot. Tradução de José Miguel Silva. Relógio d’Água, novembro de 2011.

Férias de agosto

Estou a passar férias em Middlemarch . Entre outras coisas instrutivas, aprendi a tratar os médicos por facultativos . (Os políticos deviam ler os clássicos; se ampliassem o vocabulário, talvez depois conseguissem ampliar as ideias?)

Travar navalhas com ideias

Leio no jornal as terríveis notícias sobre o esfaqueamento de Salman Rushdie, em Nova Iorque. No Irão, o jornal ultraconservador Kayhan congratulou-se com o ataque ao escritor: «Bravo a este homem valente e consciente do dever que atacou o apóstata e vicioso Salman Rushdie. (...) Beijemos a mão daquele que rasgou o pescoço do inimigo de Deus com uma faca.» O diário estatal Asr Iran escreveu: «O pescoço do diabo [foi] golpeado por uma navalha.» E o diário Khorasan titulou: «Diabo a caminho do inferno.» Na mesma edição do Público , um pouco mais à frente, leio um extenso artigo de Pedro Rios sobre o trabalho de Joe Mulhall, corajoso antifascista inglês e membro da organização Hope Not Hate . Joe Mulhall infiltrou-se várias vezes em movimentos radicais de extrema-direita para «expor o seu perigo ao grande público». Retenho estas palavras a propósito da visão «ingénua» de que o fascismo, o ódio, o racismo, a xenofobia e a extrema-direita se combatem com ideias, usando os mesmos palcos

Alguns nomes de personagens das peças de Goldoni

Limoncino, Clorinda, Moracchio, Scavezzo, Lisetta, Crespino, Coronato, Hortênsia, Barão do Cedro, Conde da Rocha Marinha, Flamínia, Tognino (ocorre pelo menos em duas peças e em ambas é o nome de um criado), Fulgêncio, Succianespole, Cavaleiro de Ripafratta, Marquês de Forlipópoli, Conde de Albafiorita, Dejanira e, claro, Mirandolina. É um outro género de música de embalar.

Música de embalar

«Música ambiente» nos cafés, nos bares e nas esplanadas. «Música ambiente» nas frutarias, nas mercearias e nas lavandarias self-service . Nos parques de estacionamento e nas estações de metro. Nos auto-rádios, nas filas de trânsito e nas chamadas em espera. Estranha música para embalar sonâmbulos. Não se deve acordar os sonâmbulos.

Pesadelo perfumado

Diz-se que viajamos para ver o mundo. Que mundo vêem os turistas que viajam até ao Porto? Que pesadelo perfumado filmaria Kidlat Tahimik na nossa cidade?

Il fiore del partigiano

Todos os dias, ao fim da tarde, aparecem dois músicos de esplanada. Um toca banjo e o outro clarinete. O segundo também canta. O repertório é quase sempre o mesmo e termina com Bella Ciao : «Una mattina mi son svegliato/ E ho trovato l'invasor.» Espalhados pelas mesas, entre cocktails sofisticados, tábuas de queijos e tostas de abacate, os turistas acompanham a plenos pulmões: «E se io muoio da partigiano/ O bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao!»