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Metáfora coerente

Li num livro — antiquado — sobre a linguagem que uma metáfora «deve poder ser desenhada». Tudo o que se faz de «válido» em literatura desde Rimbaud, tendo sido ele o iniciador, é a negação desta definição que, verdade seja dita, só se aplica aos clássicos ou à literatura de inspiração didáctica. A metáfora coerente já passou.  Dez séculos de rigor, de metáfora coerente, de linguagem esclerosada foram abolidos em poucos anos, em parte graças ao surrealismo, à moda de Rimbaud, às influências da ciência. É neste estado de linguagem deslocada que é possível traduzir pela primeira vez para francês autores até agora considerados intraduzíveis. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Au bistrot

Esta noite sonhei com Cioran; foi a primeira vez que aconteceu. Procurava lugar na esplanada de um café ou restaurante ( bistrot ). A esplanada estava vazia, assim como as ruas. Só Cioran, ou Cioran só — talvez seja melhor assim. A esplanada tinha a forma de um triângulo escaleno, escolheu uma mesa no ângulo mais apertado, mas continuava de pé — à espera de quê? Ia falar com ele quando acordei. Poupei-me à banalidade de uma conversa espectacular dentro do sonho mas que se revela parva mal acordamos.

Natal dos bombeiros

À entrada do quartel da Constituição, os bombeiros instalaram um velho jipe decorado com luzes, fitas e pendentes de Natal. O carro é puxado por quatro renas de plástico, de tamanho quase real. Sentado no capô, um vigoroso manequim, daqueles que se vêem nas montras das lojas de moda, vestido de Pai Natal. Com a chuva, as barbas deslizaram pelo queixo e pingaram, como um trapo sujo, até ao pescoço. O vento arrancou o nariz vermelho do Rudolfo.

Metáfora coerente

O tecto do quarto onde guardo os livros ruiu. Olho para o buraco e vejo aquilo a que Cioran chama metáfora coerente . Mais um caso de tradução activa .  

Torre Bela, Roménia

Conta-me um amigo que durante a propaganda da colectivização, numa aldeia perto do Danúbio, tentou convencer um camponês da superioridade dos novos métodos e das vantagens que teria em trabalhar em horários fixos, em comum, como um funcionário, do rendimento mais elevado, etc., etc., etc. Mas o camponês, prudente, não quis dizer nem sim nem não, apenas apontou, em jeito de resposta, para um pássaro que acabara de voar sobre as suas cabeças. Não ousou falar de liberdade, mas teve a coragem de designar o seu símbolo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Afinidades

Por razões de trabalho, tive de reler o Ensaio Sobre a Cegueira . Algumas intuições de Saramago são realmente notáveis. Certos aspectos da crise sanitária de 2020-2022 parecem ter sido inspirados no livro, que é de 1995: os confinamentos, a gestão da informação pelos organismos oficiais, a suspensão das liberdades, o papel das chamadas «forças da ordem». Mas quando a ficção mergulha no que é verdadeiramente essencial, quero dizer, quando nos faz descer ao mais profundo de nós mesmos para questionar o que somos, prefiro muito mais A Auto-Estrada do Sul , do Cortázar. Gostava de conseguir explicar melhor. Mas talvez não exista outra explicação senão a do gosto. Fácil e difícil de explicar.

Bicharada

25 de dezembro de 1959  Recebo um postal de natal de um poeta espanhol, com a reprodução de um rato.  Símbolo, diz ele, de tudo o que podemos «esperar» do ano de 1960. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

O evento

Tudo começou em 2017, quando Douglas Rushkoff - um professor de teoria dos media e de economia digital, e um dos 10 mais influentes intelectuais da atualidade segundo o MIT - foi convidado, com um tentador honorário equivalente a meio ano de salário, a proferir uma conferência sobre o futuro da tecnologia numa luxuosa e isolada estância. Para surpresa de DR, o público era constituído por apenas 5 grandes investidores de capital de risco, que cercaram o orador com temas fora da agenda do convite. As perguntas prendiam-se com a sua sobrevivência pessoal depois do "evento", o nome dado ao colapso da civilização por causas ambientais, nucleares, tecnológicas, pandémicas, ou pela combinação de todas elas: Qual o melhor sítio para construir um bunker, Alasca ou Nova Zelândia? Como garantir a fidelidade dos guarda-costas, depois do evento? Como impedir as multidões enlouquecidas pelo desespero de assaltarem esses redutos pós-apocalípticos? Viriato Soromenho-Marques.  Texto completo

Cinco dias sem escrever

Sentado diante da folha. Sentado diante da folha três dias. Sentado diante da folha cinco dias. E «as coisas, dentro de mim, a gritar por ser ditas» (Llansol). Quando não são ditas, quando falta garganta e talento para gritá-las, as coisas transformam-se em veneno. Dentro de mim, há uma bolha de veneno. Não há remédios rápidos para esta doença. É deixar ferver até rebentar.

Até a Roménia

Quando Portugal se indigna porque "até a Roménia" o vai ultrapassar economicamente, esquece-se de que haverá um país qualquer que se indigna porque "até Portugal" o vai ultrapassar economicamente. Não há nada mais triste do que o orgulho dos mesquinhos. Pedro Ludgero. Mesquinhez, sim. E uma dose doida de sobranceria que resulta da nossa profunda, desgraçada e periférica ignorância.

Os meus livros

Foi à base de estimulantes (café, tabaco) que escrevi todos os meus livros. Desde que me é impossível tomá-los, a minha «produção» caiu para zero. Do que depende a actividade do espírito! Todos os meus livros são meios-livros, ensaios no verdadeiro sentido do termo. Desperdicei em conversas, sobretudo na juventude, o melhor de mim mesmo. Os meus livros, tanto romenos como franceses, não são senão um reflexo muito miserável do que era, do que sou. Os monólogos frenéticos de outrora não subsistem sequer na minha memória. Consumi-me com uma generosidade de que agora sinto a falta; gasta, dela só restam fragmentos. Mesmo que ainda a possuísse, já não a podia suportar, sustentá-la fisicamente , por falta de energia e vitalidade. Para certas virtudes é preciso um certo corpo. Os meus livros podem não ser bons — mas pelo menos têm o mérito de surgir de todos os meus sofrimentos. Quando estava a escrever o Breviário , lembro-me de afirmar com bastante frequência: «Vou ajustar contas com

Black Friday

Lembro-me muitas vezes daquela história do Picabia sobre o homem que mastigava um revólver. O homem já era velho e tinha dedicado a vida inteira a mastigar o revólver. Se parasse um só instante, a arma dispararia e era o fim. O capitalismo é este velho.

Fi!

É o registo mais reduzido dos Cadernos : uma palavra de duas letras, um ponto de exclamação, um som sibilante.  Sabendo como Cioran aprecia o laconismo e o assombro pré-verbal das interjeições [em junho de 1971 escreveu:  Decidi reunir as reflexões dispersas nestes trinta e dois cadernos. Só daqui a dois ou três meses é que verei se podem dar origem a um livro (cujo título poderá ser «Interjeições» ou então «O Erro de Nascer»). ], atrevo-me a afirmar que este Fi! descreve de forma desconcertante mas profunda toda a sua obra.  Como se trata de uma interjeição de irritação, tem imensas possibilidades de tradução e se nenhuma agradar também se pode inventar um som agreste que se ajuste aos modos exaltados do filósofo.  Alguns exemplos:  Se quiser encostar Cioran ao Pedro Costa e ao Rui Chafes (— e porque não? ficam tão bem os três abrigados na letra C ): Fora!  — E está tudo dito.  Também posso levar a interjeição para o lado dos russos (via Filipe e Nina Guerra, se não me engano), prese

Uma partida de xadrez

In May 1917, Henri-Pierre Roché played and lost a chess game against Francis Picabia over which the two had wagered the continuation of their respective New York-based Dadaist magazines (Roché's The Blind Man and Picabia's 391 ). Forced to discontinue The Blind Man as a result of his losing the chess match, Roché launched Rongwrong alongside co-editors Marcel Duchamp and Beatrice Wood, and published just one issue of the magazine. Duchamp had wanted to name the magazine "Wrongwrong", but the title was misprinted as "Rongwrong", and in true Dada fashion they accepted the mistake as the official title of their magazine. Daqui.