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Os meus livros

Foi à base de estimulantes (café, tabaco) que escrevi todos os meus livros. Desde que me é impossível tomá-los, a minha «produção» caiu para zero. Do que depende a actividade do espírito!

Todos os meus livros são meios-livros, ensaios no verdadeiro sentido do termo.

Desperdicei em conversas, sobretudo na juventude, o melhor de mim mesmo. Os meus livros, tanto romenos como franceses, não são senão um reflexo muito miserável do que era, do que sou. Os monólogos frenéticos de outrora não subsistem sequer na minha memória. Consumi-me com uma generosidade de que agora sinto a falta; gasta, dela só restam fragmentos. Mesmo que ainda a possuísse, já não a podia suportar, sustentá-la fisicamente, por falta de energia e vitalidade. Para certas virtudes é preciso um certo corpo.

Os meus livros podem não ser bons — mas pelo menos têm o mérito de surgir de todos os meus sofrimentos.

Quando estava a escrever o Breviário, lembro-me de afirmar com bastante frequência: «Vou ajustar contas com a vida.» Tratava-se, é preciso dizê-lo, de uma execução. Todos os meus livros procedem do mesmo espírito.

O que é mau na minha forma de escrever são os vestígios de estilo filosófico. E o que dificulta um pouco a leitura dos meus livros é a supressão de frases intermediárias, explicativas, aparentemente supérfluas, mas no fundo necessárias pois facilitam a tarefa do leitor. Como escrevi cada um dos meus textos três ou quatro vezes, essas frases parasitas, mas úteis, apaguei-as implacavelmente. Talvez devêssemos publicar apenas o primeiro rascunho, quer dizer, a versão em que explicamos a nós mesmos o que queremos «demonstrar», «provar», aquilo que julgamos ter descoberto.

Não sei por que me preocupo tanto por causa da tradução dos meus livros. Os meus tradutores (excepto Marthiel) parecem sempre que me estão a fazer um favor, uma concessão: traduzem qualquer um, mas quando se trata de mim, é sempre a mesma coisa: dir-se-ia que estão a fazer um sacrifício, que perdem dinheiro para me dar a conhecer. Para mim, tudo isso é extremamente humilhante e acabei por me fartar. Se os meus livrinhos valem alguma coisa, serão traduzidos um dia; senão, para quê me preocupar com eles? De qualquer das formas, não me trazem nada: nem dinheiro, nem coisa nenhuma. Acabemos com estes problemas que me exasperam e me envenenam inutilmente. Que guarde o meu fel para uma causa melhor!

Tudo o que escrevi é produto de uma tristeza impetuosa. Mas nem sempre estou triste, por isso os meus escritos dão apenas uma imagem incompleta do que sou. Desbaratei a alegria na vida, nas conversas; não sobrou nenhuma para os livros: reservei-lhes todo o fel que há em mim. Só consigo escrever sob a pressão dos meus humores sombrios; quando lhes extraio alguma fórmula, eles diminuem. No meu caso, não se trata nem de filosofia nem de literatura, mas simplesmente de terapia. Talvez isso seja agradável e útil para mim, mas não para o leitor. E é justamente do leitor que se trata!

Com algumas excepções, os meus «livros» só encontram crédito junto de falhados, derrotados, desfavorecidos (sobretudo mulheres), adolescentes, em suma, junto do que é informe e inacabado.

Para um autor, a sua obra não o ajuda de todo a viver. Para ele não conta, é como se fosse de um outro. Os meus livros, quando os vejo numa livraria, não parecem ter qualquer relação comigo. São como os quartos, as casas em que vivemos há muito tempo. Raramente pensamos neles; estão vazios, não cumprem mais nenhuma função na nossa vida. Já não nos são nada.

Só se paga o trabalho de parasita, de chulo, artigos críticos, textos sobre este e aquele; pagaram-me seiscentos mil por um prefácio, enquanto todos os meus livros não me trouxeram durante um ano inteiro mais do que oitenta mil francos antigos.

Catecismo dos Vencidos — este podia ser o título colectivo dos meus livros. Sempre me senti impressionado pelo espectáculo dos dejectos da humanidade. Dejectos? Mas ela não é nada mais do que a soma desses dejectos.

A minha única desculpa: não escrevi nada que não tenha surgido de um grande sofrimento. Todos os meus livros são resumos de provações e inconsolações, quintessência de tormento e fel, todos eles são um e o mesmo grito.

Coloquei nos meus livros o pior de mim mesmo. Felizmente, porque senão quantos venenos não teria acumulado! As minhas raivas, os meus humores de assassino, os meus rancores, os meus livros transbordam de tudo isso — mas talvez fosse necessário, caso contrário não podia ter mantido alguma aparência de equilíbrio, de «discernimento». Falo sobretudo dos meus escritos romenos, onde o delírio está por toda a parte.

O meu infortúnio, nos meus livros franceses, é ter querido fazer... estilo. Reacção de meteco, compreensível, mas imperdoável.

Tenho reparado que aqueles — ou aquelas — que se interessam um pouco pelo que escrevo têm um traço comum: a neurastenia (para simplificar). Que ninguém abra este livro se não tiver sido assombrado pela ansiedade, é o que devia ser colocado na cinta de cada um dos meus livros.



Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

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