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Car je est un autre


(No te apoyes, / si estás solo, contra la balaustrada, / dice el poeta chino)

A primeira cena de Fechar os Olhos passa-se nos arredores de Paris no Outono de 1947 (Víctor Erice tinha 7 anos, Franco asfixiava Espanha). Monsieur Lévy é um judeu sefardita abastado e solitário que vive com Lin Yu numa casa grande rodeada de árvores a que deu o nome de Triste-le-Roy (La casa no es tan grande, pensó. La agrandan la penumbra, la simetría, los espejos, los muchos años, mi desconocimiento, la soledad). Está para morrer e chama Monsieur Franch para o encarregar de uma missão difícil: descobrir e trazer até ele a sua única filha Judith que a mãe levou para Xangai há muitos anos e se chama agora Qiao Shu. (¿Pero qué es un nombre?) Não quer morrer sem ver nos olhos da filha um sentimento puro onde se possa reencontrar. Tudo o que tem, a sua própria vida nada vale sem essa consagração.

Quase parece o princípio de uma história de aventuras exóticas, sim, mas a forma como é filmada diz-nos logo que não se trata de uma simples perseguição ou resgate — o mistério é mais profundo e acarreta outros perigos existenciais. Sob o pretexto de um desaparecimento ainda não consumado, Víctor Erice encena, de modo ora directo ora indirecto, através das imagens registradas ou de alusões exteriores (tantas e tantas), um penetrante jogo de sombras (a mais íntima definição de memória) com restos e dúvidas que foi acumulando ao longo da vida. Para aceitarmos o filme temos apenas de dar uns passos atrás, abandonar o comando dos olhos.

Vemos uma sala às escuras, vemos o mordomo (ou poeta?) chinês com as mãos e os olhos resguardados que corre os cortinados, mas o ambiente é ainda de penumbra porque o que vai ser dito não pode ser demasiado exposto. Entra Julio Arenas, um galã do cinema antigo, um corpo enorme entre Eddie Constantine, o triste Lemmy Caution com a sua gabardine, e John Wayne em busca de Nathalie Wood. Parece que estão num palco ou, quem sabe, num tabuleiro de xadrez, no início da partida? As personagens são filmadas a maior parte das vezes de frente, mas o que dizem não é muito claro: falam quatro línguas, enredam-se em coisas do passado e na literatura, parecem saídas de uma outra história imortal de Karen Blixen, dos desenhos angulosos de Hugo Pratt ou dos contos de Jorge Luis Borges (tão complexos e simples como os nós de marinheiro). Quem são eles? Não se trata apenas de encontrar a rapariga que conhece o gesto de Xangai nem Monsieur Franch é detective e duvido que o chinês seja mordomo. Lévy entrega a Franch uma fotografia da filha com um leque e diz-lhe que se cumprir a missão ajudá-lo-á a reconstruir a vida e a recuperar o que perdeu.

Mas alguma vez se recupera o que se perde? Nem Fausto, nem Jano (el odioso Jano bifronte que mira los ocasos y las auroras daban horror a mi ensueño y a mi vigilia), nem o triste rei do xadrez têm poderes para isso. Caminhamos todos para o fim da partida e até o cinema só raramente consegue guardar essas ruínas do tempo: qualquer coisa que foi e só se vê numa sala muito escura, se tivermos coragem. Sin temor ni esperanza.

Comentários

rui disse…
ainda não vi o filme, mas as expectativas aumentam a cada opinião de quem já viu. será o início do ano cinéfilo.

sem querer ser pedante: j.a. rimbaud na carta a paul demeny, escreveu "car je est um autre"

rui
c disse…
Mas olha que não é consensual. Acho que quem já gosta de Erice, gosta mais. O filme implica muitas coisas anteriores e dá trabalho :)

Claro, obrigada. Ao escrever corrigi e errei :D