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A mostrar mensagens com a etiqueta Robert Walser
“Quem anda de cabeça para baixo, minhas Senhoras e meus Senhores, quem anda de cabeça para baixo tem o céu como abismo por baixo de si.”  O parágrafo de Rogério Casanova (do post anterior) é bom para percebermos como Robert Walser, ao passar por essa situação de lugar comum, coisa que acontece com muita frequência, toma um atalho que o leva directamente para o centro da floresta. Walser não se entretém a desfazer o discurso, não dá passos para a frente e para trás, não se arma em irónico ou nostálgico, livra-se de todos esses artifícios com um “sim”: aceita a banalidade, utiliza a frase digna de uma personagem de Barbara Cartland conforme ela é num mundo de novo inocente — porque, ao contrário de Lenz, Walser consegue a proeza de andar sobre a cabeça quando quer — e tremendamente inquietante (como o branco assustador das aventuras de Arthur Gordon Pym).  “Amo-a loucamente” pode dizer uma personagem de Walser. E é tudo verdade. Como nunca antes.

Sopro

Se de repente um actor decidisse, tal como o Helmer de Robert Walser , mudar o texto ou a cena de uma peça, isso seria o fim do teatro. No teatro, há um plano, um guião, um cenário há muito desenhado. O teatro é o contrário da vida. Não há nada de rotineiro na vida, nada de previsível no rame-rame do quotidiano. Num segundo, tudo pode mudar. A morte espreita a cada passo. No teatro, pelo contrário, sabemos quem morre e quem vive. «A Ifigénia tem de morrer todas as noites.» Um actor não tem o direito de mudar o que está escrito. Na peça de Tiago Rodrigues , o momento em que o ponto tenta mudar o curso de uma história, soprando ao actor palavras que não estão no texto, é exactamente o momento em que o teatro se confunde com a vida. É o momento mais belo e mais perigoso da peça. O momento em que o teatro abandona o palco e irrompe, como uma rajada de vento, pela nossa rotina dentro. Já não é teatro, mas outra coisa mais forte. Um acontecimento sobrenatural e contrário às leis da Natureza.

Restos

Depois de pensar um bocado, escrevi esta frase: Expulso da literatura, é com os restos que Walser trabalha . É curto, mas até não está mau; quer dizer, é pouco mas é um alicerce concreto. Agora é preciso dar margem à palavra restos (nota: procurar umas coisas que Manoel de Oliveira disse sobre o filme Party ) e construir uma tese. Mas isso já não me apetece fazer — gosto de projectos inacabados.

Território espiritual

A maior parte das vezes também penso que não deveríamos dizer nada sobre Robert Walser — uma gentil retribuição da nossa parte. Mas somos sempre tentados, ah! descobrir uma palavra particular, uma frase, uma imagem que nunca ninguém viu e que se aproxime da doçura e da crueldade e que tenha profundidade não saindo do mais rasteiro e por aí fora no desvario. Acabamos afogados (João César Monteiro, por exemplo, afogou-se na escuridão e na humidade com extrema verticalidade), mas isso também não é mau. Porque em Walser é sempre tudo bom e alegre, mesmo quando choramos. Principalmente quando choramos.

Algumas traduções de Robert Walser

Da experiência do blogue anterior, aquilo que mais gostei de fazer foi traduzir. Walser, Cage, Panero, Michaux, Cioran. Pôr-me na sombra ou sob alçada é um descanso e ao mesmo tempo uma luta inquieta. Às vezes penso que devia ter seguido essa profissão, mas depois percebo que não é bem assim porque só gosto de traduzir o que gosto de ler (de preferência coisas curtas), porque sou muito lenta e faltam-me os estudos necessários (isso explica as imperfeições). Morreria à fome como a chinesa. Entre 2005 e 2006 traduzi seis textos e mais um resto de Walser a partir de versões inglesas. Vou agrupá-los aqui: A música A música é a coisa mais doce do mundo. Adoro notas musicais. Correria mil léguas só para ouvir uma. Muitas vezes, no Verão, quando passeio pelas ruas e ouço o som de um piano vindo de uma casa desconhecida, paro, pronto a morrer ali mesmo. Gostava de morrer a ouvir um pouco de música. Imagino isso tão fácil, tão natural, mas claro que é impossível. As notas apunhalam-nos mu

Batatinhas salteadas (esclarecimento)

Alguém pesquisou “batatinhas salteadas alvaro de campos” no bing e veio dar ao bicho ruim. Já aconteceu algumas vezes esta semana, por isso é melhor esclarecer o assunto. Ora bem, que eu saiba, há uma cena do engenheiro com dobrada à moda do porto servida fria ; batatinhas, acho que não. Mas podemos explicar a existência de batatinhas salteadas no blogue. Para começar, convém dizer que na origem, na língua alemã/vertente suíça, é rösti. A meio de uma representação, o actor que interpreta Helmer vê-se tomado de desejos de rösti e, seguindo uma ânsia sem travões, dá cabo dos valores morais de Ibsen. Walser é perito nestas tropelias existenciais. A tradutora podia ter retirado a trema (agora toda a comida é global); ou optado por tortilha que é semelhante ao rösti e tão comum que até se vende no supermercado. Resolveu saltear as batatas e, esse é o grande trunfo, reduzi-las a batatinhas. Leopoldina Almeida criou assim uma expressão em português que vai muito além da gastronomia e rev

Agora sim, Facilidades e Amenidades

Há regras para fazer crítica literária. Uma delas obriga a que se leia a obra antes de se proceder à análise (nos casos mais violentos pode dizer-se autópsia?) Outra (não sei se esta tem estatuto de regra ou é apenas um conselho) estabelece que não se deve tomar a parte pelo todo e vice-versa. Acima de tudo convém evitar amiguismos. Pois o que me proponho fazer não é nada disso. Apanhei o “Leão de Belford” na biblioteca e, enquanto esperava pelo 200 para o Bolhão, comecei a ler e logo nas primeiras páginas, no singular diálogo entre Georges e Sidonie, percebi tudo, quer dizer, percebi porque é que gosto desta noveleta urbana em particular e da escrita do Alexandre Andrade em geral. (Se isto fosse uma cena tipo ted talk, a imagem do leão projectada atrás de mim abria a boca, rugia e era substituída, após um corte abrupto, pela transcrição do segundo parágrafo em letras luminosas. Sons de rua distantes.) Primeira e única prova a apresentar: segundo parágrafo da obra já referida, ne

Marcas do génio

[Robert Walser] entusiasma-se ao falar da "curiosa mestria" de um Charles Dickens ou de um Gottfried Keller, em cujas obras o leitor nunca sabe se há-de rir ou chorar. Trata-se seguramente de uma das marcas do génio. Eu comento: "Isso também acontece frequentemente nos seus livros." Ele pára subitamente no meio da estrada, com um tremendo solavanco, faz um ar muito sério e dirige-se-me num tom suplicante: "Não, não! Peço-lhe encarecidamente que não volte a mencionar o meu nome em conjunto com o de tais mestres. Nem sequer deve sussurrá-lo. Ao ser mencionado na sua companhia, só me apetece enfiar-me num buraco!" Carl Seelig, Caminhadas com Robert Walser . Tradução de Bernardo Ferro.

Cada editor floresce numa determinada época

Já reparou que cada editor floresce apenas numa determinada época? As oficinas Frobenius e Froschauer na Idade Média; a editora Cotta com a ascensão da burguesia; os mestres Cassirer no dulci jubilo do período anterior à guerra; Sami Fischer numa Alemanha jovem, que se liberta do poder imperial; o aventuroso Ernst Rowohlt no casino do pós-guerra. Cada um tem a atmosfera de que precisa para desenvolver a sua actividade e ficar rico. Robert Walser, citado por Carl Seelig. Que editor floresce na época do facebook, do instagram e das mil redes sociais? Não estou certo de que a resposta esteja nas grandes editoras, que ainda funcionam segundo a lógica comercial tradicional. Talvez os casos mais bem sucedidos sejam, à sua escala, as “editoras” que alimentam em nós a ideia de que todos somos poetas e romancistas, de que todos temos uma palavra a dizer, de que editar um livro é tão simples e “natural” como publicar uma selfie no instagram. Em Portugal, mais do que a Porto Editora ou a Ley

Tudo a pé, naturalmente.

Certa vez, parti de Berna às duas da manhã em direcção a Thun, aonde cheguei às seis da manhã. De tarde estive no Niesen, onde devorei, regalado, um bocado de pão e uma lata de sardinhas. À noite estava de novo em Thun e à meia-noite em Berna; tudo a pé, naturalmente. Noutra ocasião, caminhei de Berna a Genebra, passei lá a noite e regressei. Um dos meus primeiros relatos de viagem foi sobre o Greifensee, publicado por Josef Viktor Widmann no Bund . Já na altura me pareceu dificílimo fazer a descrição de uma viagem. Robert Walser citado por Carl Seelig, em Caminhadas com Robert Walser . Tradução de Bernardo Ferro.