Alguém pesquisou “batatinhas salteadas alvaro de campos” no bing e veio dar ao bicho ruim. Já aconteceu algumas vezes esta semana, por isso é melhor esclarecer o assunto. Ora bem, que eu saiba, há uma cena do engenheiro com dobrada à moda do porto servida fria; batatinhas, acho que não.
Mas podemos explicar a existência de batatinhas salteadas no blogue. Para começar, convém dizer que na origem, na língua alemã/vertente suíça, é rösti. A meio de uma representação, o actor que interpreta Helmer vê-se tomado de desejos de rösti e, seguindo uma ânsia sem travões, dá cabo dos valores morais de Ibsen. Walser é perito nestas tropelias existenciais.
A tradutora podia ter retirado a trema (agora toda a comida é global); ou optado por tortilha que é semelhante ao rösti e tão comum que até se vende no supermercado. Resolveu saltear as batatas e, esse é o grande trunfo, reduzi-las a batatinhas. Leopoldina Almeida criou assim uma expressão em português que vai muito além da gastronomia e revela imenso sobre a escrita de Walser. Enfim, às vezes acontece e é uma espécie de pequeno milagre: ganha-se na tradução.
NORA, de IBSEN ou AS BATATAS SALTEADAS
Uma vez, um actor estreou-se no papel de Helmer. No quinto acto, depois de ler a famosa carta, sorriu, interpretou, pelos vistos, a situação como não tendo nada de trágico e exclamou num tom meloso: «Minha querida Nora, sabes uma coisa? Bem podias fazer-me, num instantinho, umas batatinhas salteadas.»
Que deixa tão estranha, que até fez suspender a respiração do público. Nora ficou apavorada. Como podia o seu marido despir assim, de repente, o seu pequeno manto de irresolução? Entre os espectadores notou-se alguma agitação. Aquele desejo tão prosaico, expresso num momento tão profundamente significativo, afigurou-se a toda a gente como muito singular, mas ninguém assobiou a cena. Falar de batatinhas salteadas numa altura em que se tratava de valores morais era assaz grave. Já não tinham qualquer cabimento todas as frases generosas a pronunciar por Nora. Com um ar negligente, como de um experimentado homem mundano, Helmer sentou-se na borda da mesa. Nora perguntou-lhe com voz hesitante se o que ele queria nesse momento era, realmente, comer umas batatas salteadas, e estava encantadora nessa sua perplexidade. «O que eu disse é a mais pura das verdades», retorquiu o seu interlocutor. O público do promenoir abanava a cabeça. Subitamente, o milagre operou-se em Nora; o público estava varado. Ela ficou contente por Helmer ter dito uma coisa tão inesperada. Os espectadores não o aplaudiram, realmente, mas deixaram-no fazer o que lhe apetecia.
Robert Walser, in A Rosa, tradução de Leopoldina Almeida, edição da Relógio d'Água, janeiro de 2004.
Mas podemos explicar a existência de batatinhas salteadas no blogue. Para começar, convém dizer que na origem, na língua alemã/vertente suíça, é rösti. A meio de uma representação, o actor que interpreta Helmer vê-se tomado de desejos de rösti e, seguindo uma ânsia sem travões, dá cabo dos valores morais de Ibsen. Walser é perito nestas tropelias existenciais.
A tradutora podia ter retirado a trema (agora toda a comida é global); ou optado por tortilha que é semelhante ao rösti e tão comum que até se vende no supermercado. Resolveu saltear as batatas e, esse é o grande trunfo, reduzi-las a batatinhas. Leopoldina Almeida criou assim uma expressão em português que vai muito além da gastronomia e revela imenso sobre a escrita de Walser. Enfim, às vezes acontece e é uma espécie de pequeno milagre: ganha-se na tradução.
NORA, de IBSEN ou AS BATATAS SALTEADAS
Uma vez, um actor estreou-se no papel de Helmer. No quinto acto, depois de ler a famosa carta, sorriu, interpretou, pelos vistos, a situação como não tendo nada de trágico e exclamou num tom meloso: «Minha querida Nora, sabes uma coisa? Bem podias fazer-me, num instantinho, umas batatinhas salteadas.»
Que deixa tão estranha, que até fez suspender a respiração do público. Nora ficou apavorada. Como podia o seu marido despir assim, de repente, o seu pequeno manto de irresolução? Entre os espectadores notou-se alguma agitação. Aquele desejo tão prosaico, expresso num momento tão profundamente significativo, afigurou-se a toda a gente como muito singular, mas ninguém assobiou a cena. Falar de batatinhas salteadas numa altura em que se tratava de valores morais era assaz grave. Já não tinham qualquer cabimento todas as frases generosas a pronunciar por Nora. Com um ar negligente, como de um experimentado homem mundano, Helmer sentou-se na borda da mesa. Nora perguntou-lhe com voz hesitante se o que ele queria nesse momento era, realmente, comer umas batatas salteadas, e estava encantadora nessa sua perplexidade. «O que eu disse é a mais pura das verdades», retorquiu o seu interlocutor. O público do promenoir abanava a cabeça. Subitamente, o milagre operou-se em Nora; o público estava varado. Ela ficou contente por Helmer ter dito uma coisa tão inesperada. Os espectadores não o aplaudiram, realmente, mas deixaram-no fazer o que lhe apetecia.
Robert Walser, in A Rosa, tradução de Leopoldina Almeida, edição da Relógio d'Água, janeiro de 2004.
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