Há regras para fazer crítica literária. Uma delas obriga a que se leia a obra antes de se proceder à análise (nos casos mais violentos pode dizer-se autópsia?) Outra (não sei se esta tem estatuto de regra ou é apenas um conselho) estabelece que não se deve tomar a parte pelo todo e vice-versa. Acima de tudo convém evitar amiguismos.
Pois o que me proponho fazer não é nada disso. Apanhei o “Leão de Belford” na biblioteca e, enquanto esperava pelo 200 para o Bolhão, comecei a ler e logo nas primeiras páginas, no singular diálogo entre Georges e Sidonie, percebi tudo, quer dizer, percebi porque é que gosto desta noveleta urbana em particular e da escrita do Alexandre Andrade em geral.
(Se isto fosse uma cena tipo ted talk, a imagem do leão projectada atrás de mim abria a boca, rugia e era substituída, após um corte abrupto, pela transcrição do segundo parágrafo em letras luminosas. Sons de rua distantes.)
Primeira e única prova a apresentar: segundo parágrafo da obra já referida, nestes termos,
“A menina Sidonie interrompeu a carta que estava a escrever a meio de uma palavra. Os seus dedos, em repouso sobre o colo, pareciam agora animaizinhos fatigados. A menina Sidonie sabia que lhe cabia a partir de agora o papel de ouvinte. Seguiu com os olhos os carros que passavam do outro lado da vidraça, brevíssimas manchas coloridas entre os rectângulos A4 que anunciavam ao mundo (ou seja, a Paris) as oportunidade de venda e aluguer. Tentou distinguir o que estava escrito na ardósia do bistrot do outro lado da Rue Lemercier, bairro de Batignollles. Demasiado cursivo e demasiado pequeno. O senhor Georges já começara o seu monólogo, demorava os gestos, demorava a voz, olhava para as coisas com um vagar magoado.”
Ora bem, isto está tão cheio de pormenores que até é difícil não nos engasgarmos no discurso. Começo pelos nomes que são sempre apropriados e irresistíveis: numa longa lista, Sidonie fica, sem qualquer embaraço, nos dez melhores. (Acrescentar Brigitte Bardot a cantar.)
Se avançarmos para as mãos, reparamos que os dedos de Sidonie pareciam “animaizinhos fatigados” em repouso sobre o colo. Esta descrição, assim como o “vagar magoado” com que o senhor George olhava para as coisas, inscreve Alexandre Andrade numa linhagem literária que se caracteriza por uma delicadeza extrema, uma sensualidade hipnótica e por aí fora, mas podemos resumir na conjugação: Robert Walser distorce os bonecos do Walt Disney com imensa amabilidade.
Outro elemento que merece destaque e a nossa completa adesão é o entusiasmo do Alexandre pelas coisas:
1. gráficas. Por exemplo, os anúncios de casa para vender ou alugar. Quem nunca parou nas montras das imobiliárias, inebriado com estas folhas A4 cheias de fotografias e promessas (de felicidade posso dizer, pois entretanto avancei mais umas páginas) mesmo sem precisar de casa e, quem sabe, desdenhando a felicidade? E também a letra demasiado cursiva e pequena no painel de ardósia do bistrot em frente. Isto leva-nos para o ponto seguinte.
2. de comer. Neste caso é apenas a lista do bistrot. Claro que nunca nada é apenas, porque fui procurar e Sidonie lá conseguiu decifrar a ementa para o almoço: “Salada de espargos com queijo tomme de Savoie. Magret de canard com puré de maçã. Tarte de merengue e lima. Fórmula entrada/prato ou prato/sobremesa. 90 francos.
Em homenagem ao Alexandre vou saltear os espargos que comprei ontem no Campo 24 Agosto, muito verdes e de caule fino como eu gosto. A crítica segue depois de um breve intervalo, ou mais tarde ainda.
Pois o que me proponho fazer não é nada disso. Apanhei o “Leão de Belford” na biblioteca e, enquanto esperava pelo 200 para o Bolhão, comecei a ler e logo nas primeiras páginas, no singular diálogo entre Georges e Sidonie, percebi tudo, quer dizer, percebi porque é que gosto desta noveleta urbana em particular e da escrita do Alexandre Andrade em geral.
(Se isto fosse uma cena tipo ted talk, a imagem do leão projectada atrás de mim abria a boca, rugia e era substituída, após um corte abrupto, pela transcrição do segundo parágrafo em letras luminosas. Sons de rua distantes.)
Primeira e única prova a apresentar: segundo parágrafo da obra já referida, nestes termos,
“A menina Sidonie interrompeu a carta que estava a escrever a meio de uma palavra. Os seus dedos, em repouso sobre o colo, pareciam agora animaizinhos fatigados. A menina Sidonie sabia que lhe cabia a partir de agora o papel de ouvinte. Seguiu com os olhos os carros que passavam do outro lado da vidraça, brevíssimas manchas coloridas entre os rectângulos A4 que anunciavam ao mundo (ou seja, a Paris) as oportunidade de venda e aluguer. Tentou distinguir o que estava escrito na ardósia do bistrot do outro lado da Rue Lemercier, bairro de Batignollles. Demasiado cursivo e demasiado pequeno. O senhor Georges já começara o seu monólogo, demorava os gestos, demorava a voz, olhava para as coisas com um vagar magoado.”
Ora bem, isto está tão cheio de pormenores que até é difícil não nos engasgarmos no discurso. Começo pelos nomes que são sempre apropriados e irresistíveis: numa longa lista, Sidonie fica, sem qualquer embaraço, nos dez melhores. (Acrescentar Brigitte Bardot a cantar.)
Se avançarmos para as mãos, reparamos que os dedos de Sidonie pareciam “animaizinhos fatigados” em repouso sobre o colo. Esta descrição, assim como o “vagar magoado” com que o senhor George olhava para as coisas, inscreve Alexandre Andrade numa linhagem literária que se caracteriza por uma delicadeza extrema, uma sensualidade hipnótica e por aí fora, mas podemos resumir na conjugação: Robert Walser distorce os bonecos do Walt Disney com imensa amabilidade.
Outro elemento que merece destaque e a nossa completa adesão é o entusiasmo do Alexandre pelas coisas:
1. gráficas. Por exemplo, os anúncios de casa para vender ou alugar. Quem nunca parou nas montras das imobiliárias, inebriado com estas folhas A4 cheias de fotografias e promessas (de felicidade posso dizer, pois entretanto avancei mais umas páginas) mesmo sem precisar de casa e, quem sabe, desdenhando a felicidade? E também a letra demasiado cursiva e pequena no painel de ardósia do bistrot em frente. Isto leva-nos para o ponto seguinte.
2. de comer. Neste caso é apenas a lista do bistrot. Claro que nunca nada é apenas, porque fui procurar e Sidonie lá conseguiu decifrar a ementa para o almoço: “Salada de espargos com queijo tomme de Savoie. Magret de canard com puré de maçã. Tarte de merengue e lima. Fórmula entrada/prato ou prato/sobremesa. 90 francos.
Em homenagem ao Alexandre vou saltear os espargos que comprei ontem no Campo 24 Agosto, muito verdes e de caule fino como eu gosto. A crítica segue depois de um breve intervalo, ou mais tarde ainda.
Comentários
«Todos os lugares do mundo estão assombrados por histórias. Em Berna, vivi durante algum tempo na casa de uma modista simpática, no número 19 da Kramgasse; o edifício pertenceu em tempos ao clã von Halwyl. Mas desengane-se quem pense que Berna é toda ela confortável. Pelo contrário. Há muitos lugares assustadores e assombrados. Foi também por isso que mudei tantas vezes de casa. Alguns quartos tinham algo de inquietante.»
Robert Walser citado por Carl Seelig.