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Cheguei ao fim de 1971, só falta um ano para o fim, trinta e tal páginas.  31 dez. 1971 Esta noite, pesadelo grandioso, desproporcional, vertiginoso.  Acordei a chamar pela minha mãe...  Quanto a dizer em que consistiu esse pesadelo, sinto-me incapaz.  1º Janeiro de 1972  Tristeza constante que me parece inútil analisar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Um recadinho amoroso

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971)

Fugir do verão como da peste

Devia reconsiderar o «problema» do suicídio: parece que negligenciei os seus aspectos mais interessantes. Podia considerá-los agora, pois notei que é de preferência no verão que me sinto disposto a abordar uma questão destas. Será o calor? Será a luz? O sol sempre me incitou a repensar este mundo e despertou em mim crises de melancolia às vezes insuportáveis. As minhas «trevas» impedem-me de me pôr em uníssono com o esplendor envolvente; do choque entre o que sinto e o que vejo nasce este estado de humor negro e tudo o que daí advém.  O verão é a estação das grandes impossibilidades. O sol é um fornecedor de ideias negras . Nada convida tanto à melancolia como uma paisagem devastada pela luz. Fugir do verão como da peste. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Jornada

Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Saltarinheiro

14 de outubro (1970) A. A. envia-me o Diário de Vlasiu onde se fala muito de mim tal como era em 1938-39.  Esse eu de que Vlasiu fala, por mais que tente, não o consigo reconhecer: escapa-me, tem a consistência de um espectro. É verdade que não se percebe lá muito bem como é que nos podemos reconhecer quando somos evocados por um saltarinheiro, por um escroque ao mesmo tempo bilioso e cheio de encanto, um labrego manhoso e cabotino como não há outro.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972   Traduzir os Cadernos  obriga-me, constantemente, a procurar uma data de insultos em português. Não são uns insultos quaisquer, têm de ser potentes e encantores ao mesmo tempo (mais ou menos:  pulverizar, mas com dedicação ).  Para além da alegria que me dá no momento, fico preparada para eventuais reclamações, guerrilhas e discussões. E também deve dar pontos no curriculum vitae .

Vencidos da vida

Ataque de fúria, mais uma vez. Será possível deixar passar os dias como eu faço? Há meses que não escrevo nada, nada, nada, nada! Irrito-me como uma puta sem clientes, barafusto contra tudo e amaldiçoo-me! Ou então consolo-me pela minha esterilidade e pelos meus fracassos, entregando-me a essa voluptuosidade de saber que já não existo para ninguém. Como se tivesse existido! Invento este esquecimento que, falso ou real, me dá uma amargura apaziguadora. Não existir mais para ninguém! Mas toda a gente, cedo ou tarde chega lá, inevitavelmente. É a grande consolação dos vencidos.  Uma miséria da qual não consegui livrar-me: a doçura da autocomiseração.  Esta manhã reflecti de novo nas possibilidades que o suicídio oferece. E depressa superei o meu acesso de fúria.  Devíamos gravar no frontispício das câmaras municipais e das igrejas: Todos nós somos vencidos .  É mais fácil viver com esta divisa do que com falsos boletins de vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

22 de novembro (1968)

Esta manhã, por volta das 3h, do Colégio Militar ao Odeon, meti por ruelas completamente solitárias. Nem vivalma. Frio. E ocorreu-me a ideia de que caminhava por uma cidade onde todos os vivos tinham sido exterminados instantaneamente (guerra bacteriológica?). Nenhuma angústia nem satisfação.  E pensei que nos adaptamos depressa à condição de sobrevivente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

22 de maio (1970)

Com a minha cobradora de impostos. Uma senhora de olhar frio, quase malicioso. Acha que não ganho o suficiente, ou melhor, que não declarei o suficiente.  — Está bem vestido. O seu fato é novo.  — São os amigos que me vestem.  — E para comer?  — Tenho a vantagem de ter uma gastrite. Estou de dieta. Nunca vou a restaurantes. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

O mar a agitar-se na tela

De repente, lembro-me do primeiro filme que vi (em 1919?) em Sibiu, no cinema «Appollo». Se não me engano, o filme chamava-se A Dama do Mar ( Doamna Mării ) (??) Recordo-me da perturbação que senti ao ver o mar a agitar-se na tela. Essa sensação, nunca a devia ter esquecido; e, no entanto, só me ocorreu hoje, quarenta e cinco anos depois! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (fevereiro de 1966)

A política do falso caracol

Expliquei hoje a Piotr Rawicz que a minha política é a do caracol: esconder-me, retirar-me, sair apenas ocasionalmente. Ele respondeu-me que não é assim tão simples, que apesar de tudo somos solicitados pelo mundo. Concordei. «Sou um  falso caracol», disse-lhe.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (julho de 1967)

Afinidades

Junto aos moralistas franceses do século XVIII — era aí que, em parte, Cioran sentia pertencer.  Por duas vezes, regista nos Cadernos que os espíritos de que se sente mais próximo são Job e Chamfort. Numa das formulações escreve mesmo:  sou um aluno de Job e Chamfort . Pela forma como estrutura o pensamento, pela delizadeza do seu francês, e principalmente por mais qualquer coisa que não se deixa definir, é uma afirmação verdadeira.  No entanto, se tivesse que descrever as suas afinidades com as minhas próprias palavras, correndo o risco de parecer que estava a apresentar um namorado recente, diria que Cioran está entre Bach e Francis Bacon (o pintor).

Mulheres doentes

Os meus «escritos» só tiveram algum sucesso junto das mulheres, de umas quantas, muito raras. Encontro a explicação para isso na sentença tão justa de Hipócrates: «A mulher é a doença.»  Uma pessoa saudável não pode interessar-se pelo que faço.     Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (setembro de 1964)

Livros do Desassossego

Só se deve escrever e sobretudo publicar coisas que fazem mal, quer dizer, que não conseguimos esquecer. Um livro deve remexer feridas ou até mesmo provocá-las. Deve estar na origem de um desassossego  fecundo ; mas acima de tudo um livro deve constituir um perigo . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Sonatas para Violino de Bach.  Temos de nos emancipar, não só na música, mas também na filosofia, e em tudo, da orquestra . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Maio de 68

O que acho bonito é que durante os acontecimentos de Maio, os estudantes não recorreram a Gide, nem a Valéry, nem a Claudel, mas a Artaud , que era pouco conhecido e certamente desprezado por essas três estrelas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (junho 1968)

Aquilo que ainda sobra

Cioran passa o tempo a ler. Tento seguir as referências que surgem nos Cadernos mas, como não tenho a vida dele, não o consigo acompanhar. Noutro dia vi Tonio Kröger na Biblioteca e lembrei-me desta anotação: «Tudo o que sou, o pouco que valho, devo à extrema timidez da minha adolescência. O meu lado Tonio Kröger .»  O livro é muito trabalhado, quase que se ouve a cabeça de Thomas Mann a escolher as palavras, a balançá-las — tudo isso. Apesar de alicerces extremamente sólidos, é divertido. Por exemplo tem dois punctums muito estimulantes: a flor campestre na lapela do pai de Tonio ou o cigano num carro verde que só vemos dentro da cabeça de Tonio, talvez por ele próprio ser escritor; a cena com o polícia que o toma por um ladrão em fuga para a Dinamarca e que começa com tons de Kafka e acaba como uma comédia portuguesa dos anos 30 ou 40 com a palavra provas a fazer ricochete também é muito cómica; ou até mesmo a conversa instrutiva no atelier de Lisaveta Ivanovna — bom, era aqui
Não há riso no Cristianismo.  Só poderia aderir a uma religião em que o Criador se risse da Criação — um Deus trocista.  Seria tudo muito mais fácil se aceitássemos um Deus trocista. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (junho 1968)

Lagom

«… o único segredo da felicidade é renunciar a tudo.» (Cristina da Suécia)  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (escrito em maio de 1968) Volto aos Cadernos de Cioran como quem volta a casa ou, pelo menos, a um lugar conhecido mas estranho ao mesmo tempo. Se ele soubesse deste (nem sei bem que palavra escolher, talvez enlevo com sotaque açoriano a meio do atlântico?) pois sim, enlevo ou alegria, era capaz de ficar um bocado chateado e um bocado vaidoso. Estou em junho de 1968 — temos praticamente a mesma idade.