E traduziste na primeira pessoa do plural? :) (Apesar da bela ironia, senti que esse "temos" saltava da frase não acho que ele se possa misturar ao Cioran)
Pareceu-me a formulação menos rebuscada e também com mais força (a indeterminação do sujeito com «se» nem sempre funciona bem em português).
Ao longo dos Cadernos, Cioran tenta livrar-se do «eu», mas nem sempre consegue porque é uma coisa muito arreigada nele. Às vezes usa a primeira pessoa do plural (não neste caso) com um sentido um pouco indeterminado e aproveitei-me disso. Dois exemplos de agosto de 1962:
«Chega um momento em que já não é possível escaparmos às consequências das nossas teorias. Tudo o que propusemos, seja por necessidade interior seja por espírito de paradoxo, torna-se o próprio elemento de nossa vida. E é então que lamentamos as ilusões que destruímos e que gostaríamos de restaurar. Mas é demasiado tarde.
Só sentimos realmente que temos uma «alma» quando escutamos música.»
Nesta anotação das Sonatas para Violino de Bach, imaginei que ele estava a falar com Karin (do filme Saraband) — talvez seja mais uma traição.
Se calhar só consigo traduzir Cioran assim, de um jeito um bocado dissonante.
Il vient un moment où il ne nous est plus possible de nous dérober aux conséquences de nos théories. Tout ce que nous avons avancé, soit par nécessité intérieure, soit par esprit de paradoxe, devient l’élément même de notre vie. Et c’est alors que nous regrettons les illusions que nous avons détruites et que nous voudrions rétablir. Mais il est trop tard.
Nous ne sentons vraiment que nous avons une « âme » que lorsque nous écoutons de la musique.
boa noite disse…
Obrigado pela resposta É que não o vejo usando o nós assim, como um imperativo. Somos humilhados; não devemos fazer nada
Por um lado, vejo-o fugindo do eu, como disseste. Por outro, vejo-o fugindo do nós, sempre que vem a hora dos preceitos, das máximas. Lembro inclusive de uma entrada em que dizia: que direito tenho eu de acordar alguém?
É sempre uma tentativa de controlar-se: e de não controlar os outros. Coisa difícil para alguém que se exaltava tão facilmente, que levava tudo tão à pele. Nesse ponto ele é parecido com o Straub, que não se segurava, deixava escapar aos outros os preceitos que se dava a si, e depois se arrependia
Quando traduzo não penso, quer dizer, penso nas palavras mas não teorizo. Até as notas que às vezes publico estão a vários passos da teoria. Estas interpolações que me obrigam a parar e apresentar contas até dão jeito, ajudam a perceber se o meu trabalho se aguenta, como se estivesse num tribunal.
Cioran é um tipo cheio de contradições, e isso revela-se mais ainda, creio, nos Cadernos que não são, nem um diário nem, digamos assim uma obra, mas um exercício constante de pensamento. Quando Simone Boué os leu ficou admirada porque encontrou um Cioran muito árido, muito sombrio, muito solitário, muito desconhecido (ela vivia com o seu lado mais doce).
Há umas anotações, de que gosto muito em que ele formula um pensamento em duas ou três frases alternativas. Procede como um tradutor que experimenta. A tradução é uma coisa que lhe interessa, também dá indicações (geralmente óptimas porque conhecia várias línguas) e, na medida do possível, tento segui-las.
Mas voltando ao tema em discussão, há também anotações em que Cioran usa até o modo verbal imperativo, vamos fazer isto e vamos fazer aquilo — em verdadeiros apelos, às vezes sucessivos, à acção. E isso é extraordinário pois sabemos que ele era grande apologista da inacção, sim — mas também dos paradoxos.
Depois deste palavreado todo, tenho ainda de acrescentar que não sou especialista em Cioran. De forma nenhuma. Não li os seus livros (só de raspão) e não vou ler até terminar a tradução dos Cadernos. Quis preservar uma certa ignorância ou falta de feito ou o que seja. Pode até nem ser um método aconselhado para esta tarefa, mas é assim que a quero realizar.
Boa noite disse…
no final das contas eu também só queria entender que é que me havia soado estranho nessa frase que eu havia anotado há já alguns anos, que eu me havia bastante repetido
Eu acho que o motivo do estranhamento é esse que eu disse. Mas isso não quer dizer que esteja mal, ou errado
Eu talvez não a tivesse traduzido assim. Mas agora que está feita, funciona, e não é mais discutível do que qualquer outra coisa
Comentários
não acho que ele se possa misturar ao Cioran)
Ao longo dos Cadernos, Cioran tenta livrar-se do «eu», mas nem sempre consegue porque é uma coisa muito arreigada nele. Às vezes usa a primeira pessoa do plural (não neste caso) com um sentido um pouco indeterminado e aproveitei-me disso. Dois exemplos de agosto de 1962:
«Chega um momento em que já não é possível escaparmos às consequências das nossas teorias. Tudo o que propusemos, seja por necessidade interior seja por espírito de paradoxo, torna-se o próprio elemento de nossa vida. E é então que lamentamos as ilusões que destruímos e que gostaríamos de restaurar. Mas é demasiado tarde.
Só sentimos realmente que temos uma «alma» quando escutamos música.»
Nesta anotação das Sonatas para Violino de Bach, imaginei que ele estava a falar com Karin (do filme Saraband) — talvez seja mais uma traição.
Se calhar só consigo traduzir Cioran assim, de um jeito um bocado dissonante.
Il vient un moment où il ne nous est plus possible de nous dérober aux conséquences de nos théories. Tout ce que nous avons avancé, soit par nécessité intérieure, soit par esprit de paradoxe, devient l’élément même de notre vie. Et c’est alors que nous regrettons les illusions que nous avons détruites et que nous voudrions rétablir. Mais il est trop tard.
Nous ne sentons vraiment que nous avons une « âme » que lorsque nous écoutons de la musique.
É que não o vejo usando o nós assim, como um imperativo. Somos humilhados; não devemos fazer nada
Por um lado, vejo-o fugindo do eu, como disseste. Por outro, vejo-o fugindo do nós, sempre que vem a hora dos preceitos, das máximas. Lembro inclusive de uma entrada em que dizia: que direito tenho eu de acordar alguém?
É sempre uma tentativa de controlar-se: e de não controlar os outros. Coisa difícil para alguém que se exaltava tão facilmente, que levava tudo tão à pele. Nesse ponto ele é parecido com o Straub, que não se segurava, deixava escapar aos outros os preceitos que se dava a si, e depois se arrependia
Cioran é um tipo cheio de contradições, e isso revela-se mais ainda, creio, nos Cadernos que não são, nem um diário nem, digamos assim uma obra, mas um exercício constante de pensamento. Quando Simone Boué os leu ficou admirada porque encontrou um Cioran muito árido, muito sombrio, muito solitário, muito desconhecido (ela vivia com o seu lado mais doce).
Há umas anotações, de que gosto muito em que ele formula um pensamento em duas ou três frases alternativas. Procede como um tradutor que experimenta. A tradução é uma coisa que lhe interessa, também dá indicações (geralmente óptimas porque conhecia várias línguas) e, na medida do possível, tento segui-las.
Mas voltando ao tema em discussão, há também anotações em que Cioran usa até o modo verbal imperativo, vamos fazer isto e vamos fazer aquilo — em verdadeiros apelos, às vezes sucessivos, à acção. E isso é extraordinário pois sabemos que ele era grande apologista da inacção, sim — mas também dos paradoxos.
Depois deste palavreado todo, tenho ainda de acrescentar que não sou especialista em Cioran. De forma nenhuma. Não li os seus livros (só de raspão) e não vou ler até terminar a tradução dos Cadernos. Quis preservar uma certa ignorância ou falta de feito ou o que seja. Pode até nem ser um método aconselhado para esta tarefa, mas é assim que a quero realizar.
Eu acho que o motivo do estranhamento é esse que eu disse. Mas isso não quer dizer que esteja mal, ou errado
Eu talvez não a tivesse traduzido assim. Mas agora que está feita, funciona, e não é mais discutível do que qualquer outra coisa