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A mostrar mensagens com a etiqueta palavras

Fumo

Acendo um cigarro para invocar as palavras. Nada. Apenas fumo. Pequenas nuvens pelo ar. Mas há qualquer coisa no fumo do cigarro. Um mistério qualquer. Asa, pluma, um silêncio.  O que será?

Máscaras e palavras

Sou meio duro de ouvido. Acontece-me por vezes não perceber à primeira o que me dizem. Por timidez, nem sempre peço para repetirem. Com as máscaras, o problema generalizou-se e eu desisti. Há conversas em que consigo perceber apenas algumas palavras. Mas será que ouço as palavras correctas ou simplesmente imagino-as? Quantos diálogos extravagantes não têm acontecido nestes tempos de pandemia? Quantas histórias paralelas não têm vivido as pessoas duras de ouvido?
Uma palavra é morta quando é dita, dizem. Eu digo — apenas começa a viver nesse dia. Emily Dickinson Mais uma tradução para a  lista . Bastante seca. Quase, quase ao nível de um tradutor automático artificial. (Não me contive, acrescentei um travessão)

Öffnungsdiskussionsorgien

Queria continuar a ruminar umas frases sobre os contos de Flannery O’Connor (depois dos intelectuais — tão atrasados — ainda um textinho de ocasião sobre ambulâncias), mas a realidade mete-se no caminho. A propósito do desconfinamento, Angela Merkel criou uma bela palavra:  Öffnungsdiskussionsorgien . Estas palavras frásicas alemãs são tão grandes que podemos analisá-las como se fossem imagens. Como uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho.

Vizinho

Não sei o nome. É o homem que passa a manhã à janela, no prédio em frente. Começámos a cumprimentar-nos com um gesto silencioso de mão e um sorriso tímido de cortesia. A pandemia devolveu-nos alguns gestos, mas também algumas palavras. As palavras «janela», «vizinho», «rua», «bairro». Ou o termo «redes sociais». Pouco a pouco, entre uma janela e outra, de um lado ao outro da rua, limpamos a gordura que se acumulou sobre as palavras e redescobrimos a sua pureza.

Um mundo de acordo com os nossos desejos

Há muitas maneiras de traduzir lay off . As que mais me agradam são “deslargar”, “descartar” e “desamparar” — como na frase “desampara-me a loja”. Como quem enxota uma mosca. É preciso o máximo de informalidade na tradução para desmontar a hipocrisia dos actos empresariais. Só assim conseguiremos agir de acordo com os nossos desejos. Não esperem gratidão.

Glossário básico COVID-19

Achatar a curva, ADC, aerossolizar, agente de saúde pública, álcool, assintomáticos, aviso, barreiras de protecção, centro de rastreio drive thru, cerca sanitária, compressão na mola, confinamento, contágio, controlo de fronteiras, coronabonds, dar negativo/positivo, dificuldades respiratórias, distanciamento social, drone, encerrado por tempo indeterminado, equipamento de protecção individual, estado de emergência, etiqueta respiratória, febre, ficar em casa, gel desinfectante, grau de incerteza, guerra, hospital de campanha, hospital de primeira linha, infectados, inquérito serológico, isolamento profiláctico, layoff, letalidade, luvas, máscara cirúrgica, máscara FFP2, máscara social, médicos intensivistas, medidas de contenção, mitigação, morbilidade, morrer com/ por Covid, pandemia, papel higiénico, passear o cão, planalto, quarentena, rastrear, Rt, teletrabalho, testar testar testar, teste de imunidade, tosse, triagem smart, UCI, vacina, ventiladores, vírus, viseira, vulnerabilida

Coisas abstratas

O que Wittgenstein escreve sobre Pascal e os números é uma espécie de superfície espelhada; do outro lado vemos Wittgenstein e as palavras. O mesmo êxtase perante as “admiráveis propriedades” das coisas abstratas.

Erros sucessivos

Quando escrevi “talvez os seus aforismas não surjam de um pensamento analítico sustentado” , enganei-me. Só me apercebi da gralha mais tarde. Corrigi. Aforisma  utiliza-se em medicina e designa “hematoma resultante da ruptura de um vaso sanguíneo”. As palavras têm um sentido clandestino e autónomo que vê tudo com mais clareza. Corrigir é um erro maior.

Liquidação

E ainda a propósito do sentido das palavras : Somos feitos de palavras. São o nosso limite e ilimite. Ético. Estético. Político. Com elas nos exprimimos, atrás delas nos escondemos. São mentira reveladora, verdade tímida, meia verdade. Carregam a nossa impotência e embriagam-nos com o seu poder. Apesar da omnipresença das imagens, as palavras passaram a ser o suporte mais forte da pós-verdade. A par das fake news , que inundam a cena política, o recurso ao fake knowledge , amiúde assente no name dropping , tem vindo a vulgarizar-se a ponto de haver quem defenda, com falsa candura, que tudo é o que é e o seu contrário. Só assim se explica que proibir pretensamente signifique permitir que alguém se coíba... (...) Repare-se, por exemplo, na utilização pelos programadores dos Teatros Municipais do termo “ocupar” (1000 razões de ocupar o teatro) que, remetendo para factos ocorridos num passado assaz recente – a saber: a luta contra a privatização da gestão do Rivoli –, aposta no seu t

Pensar com as mãos (take 2)

Jerónimo de Sousa é o político que melhor se relaciona com as palavras. Usa-as para exprimir pensamentos e não para exercícios de comunicação. Quando diz:  não sabia fazer uma lei, mas sabia o que era fazer uma greve, ser despedido sem justa causa por motivos político-ideológicos, vir do Sindicato dos Metalúrgicos e da Comissão de Trabalhadores da empresa e falar de liberdade sindical e dos direitos, do valor da Contratação Colectiva e do combate à discriminação salarial das mulheres. Percebemos que os seus pensamentos correspondem a uma prática. Se nos concentramos bastante, conseguimos ver o passo da história. E aquilo a que Godard chama pensar com as mãos?

Verde que te quero verde

Daqui até às eleições legislativas, todos os partidos políticos vão falar de questões ambientais. Vão integrá-las nos cartazes, nos posts das redes sociais, nos programas e talvez em pins giros para a lapela. Não porque seja um tema crucial, mas por causa dos últimos resultados eleitorais. Os partidos gostam demasiado da superfície e de votos. Já arranjei uma palavra para o fenómeno: panalização .

Disrup·ti·vo 

É o ataque mais constante do nosso tempo mas, porque a perda que provoca é uma perda de possibilidades e não de objectos, deixa a maior das pessoas indiferente. O ataque à linguagem não é uma acção concertada, nem sequer é uno, são diversos assaltos e têm objectivos diferentes; quando se juntam, resultam numa força destruidora colossal. Já estamos para lá dos eufemismos, essa suavidade falsa que tomou conta da linguagem cortando as arestas dos nossos pensamentos e gestos. Os trabalhadores transformados em colaboradores e de uma forma geral a economia embrulhada em gaze para melhor nos escapar. Para além dessas palavras tão difundidas, tão gastas que já não dizem nada, é só um bocejo. "Zona de conforto" para aqui, "zona de conforto" para acolá, mas que raio é que isso quer dizer? Porque é que repetem esta ladainha? Lembram-se do incêndio do Funchal e dos que se seguiram no continente? Foram todos “dantescos” — toda gente o disse e repetiu até à exaustão. Até que &q

Caprichos e galopes

Apesar de separadas apenas por um espelho, dificilmente consigo aproximar l’affaire francesa — tão cosmopolita e misteriosa, quase sempre singular — dos afazeres rotineiros que vão enchendo a nossa vidinha.

Morte

Uma das palavras mais pesquisadas do dia do priberam é peido-mestre. Substantivo e adjectivo unidos por hífen — espécie de palavra gémea que vive nas costas do último suspiro. Em si, isto não é relevante; o que acho estranho é — em tantos livros que já li, escritos em português ou traduzidos — nunca a ter encontrado. Enfim, perder a oportunidade de usar um termo tão tronante como um Deus grego parece-me uma grande falha da literatura contemporânea. No entanto, ainda com as imagens do último filme de Eastwood na cabeça, consigo ver Earl Stone (caramba, que nome porreiro e tão certo) de boné e óculos escuros no carro: a guiar com as duas mãos no volante, a olhar em frente, a murmurar qualquer coisa que não se percebe, a terminar a frase com a palavra “peido-mestre”( the last desperate fart ).