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Luxo

A ideia de que a morte deve ser o principal tema de reflexão e o objecto principal da atenção dos vivos nasceu com o luxo - com a abundância de reservas. Daí a estranha pergunta: perante coisas inúteis, em que pensar? Paul Valéry, Fragmentos narrativos. Tradução de Leonor Nazaré. Este livro é uma edição Dois Dias, casa editora que será apresentada na Sede, no próximo sábado, 25 de Março, pelas 17h00.

Mas um homem não é um cão.

«Seria possível a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov levar as pessoas a obedecer à doutrina do Cristianismo?», pensou o Cardeal [Pölätüo] para consigo. Colocou uma folha de papel na sua macchina da scrivere e dactilografou com dois dedos: Para evocar reflexos são necessários estímulos. Os estímulos podem ser positivos ou negativos; exemplos: alimentos ou dor. Estes estímulos encontram-se nas mãos do poder secular, Temporal. Pensou mais um instante, após o que escreveu: Mas um homem não é um cão. Para um homem, os estímulos materiais são desnecessários. Para um homem, basta dizer que ficará confortável, ou que irá sofrer. E estes estímulos, positivos e negativos, estão acessíveis às mãos da Igreja. A campainha da máquina de escrever fez-se ouvir no final da linha. Pölätüo rodou o carreto. De repente, os seus dedos começaram a saltar sobre as teclas como se tivessem vontade própria. Mas esses estímulos já se encontram nas mãos da Igreja. São o PARAÍSO e o INFERNO! (...) E

A arte pode ser feita por programas de computador? Ou ela requer alguma dimensão específica e irredutivelmente humana?

Tendemos a pensar que a arte é o reduto último de afirmação da irredutibilidade de nossa espécie; portanto, uma justificação inexpugnável de sua singularidade, senão de sua superioridade.  (...) A filosofia da composição , de Edgar Allan Poe, revelou o quanto de pensamento crítico e consciente está em jogo durante o processo de criação (menos misterioso e inspirado do que se queria, portanto); nos poemas destituídos de eu lírico de Mallarmé, a própria linguagem parece ser o sujeito que escreve; nas Iluminações de Rimbaud já não se descreve nenhuma realidade factual ou externa, mas puras paisagens mentais; os artigos de Proust contra Sainte-Beuve, o crítico biográfico, observam que o eu civil do artista não se confunde com o eu da obra; os formalistas russos, já no início do século XX, inauguraram uma concepção radicalmente material da linguagem; há ainda a boutade precisa de Gide (“Com bons sentimentos se faz má literatura”); daí ao estruturalismo e, logo, à anunciada morte do autor
Raul Brandão.

Tens passado a vida a esperá-la

Que outra coisa fizeste na vida senão esperar a morte? É a tua maior preocupação. Debalde a arredamos: a vida não é senão uma constante absorção na morte. Então para que nasci? Para ver isto e nunca mais ver isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar? Para pressentir o mistério e não desvendar o mistério? Levo dias, levo noites a habituar-me a esta ideia e não posso. Raul Brandão, Húmus . No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

O Lado B de Húmus

Pergunto-me se Húmus pode ser lido como uma espécie de Lado A de Pedro Páramo . E Pedro Páramo o Lado B de Húmus . Onde há humidade no primeiro, há extrema secura no segundo. Onde há frio em Húmus , há calor tórrido em Pedro Páramo . Onde há negrume em Brandão, há uma luz torturante em Rulfo. De resto, a angústia é a mesma. Os fantasmas são os mesmos. O sentimento de perda é semelhante. Tudo está morto, incluindo tudo o que está vivo. (Fotografia de Juan Rulfo) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Na Suécia medieval, não se jogava a bisca

Para enganar a morte e o tempo, as personagens de Húmus (ou será melhor chamar-lhes espectros, sombras?) jogam um eterno jogo de cartas: “Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três - e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma mesa do jogo. O jogo banal é a bisca - o jogo é o da morte...” A diferença entre Brandão e Bergman é o tipo de jogo. No Sétimo Selo , o cavaleiro e a morte jogam xadrez. O resultado, no entanto, é o mesmo: ganha a morte. No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Se eu gritar

No capítulo “Deus” de Húmus , lê-se: “Preciso de um Deus que me atenda, que me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer. (…) Debaldo grito – não há quem me ouça. (…) Deus, tu és monstruoso!” Em 1923, Rainer Maria Rilke publica as Elegias de Duíno . Eis os primeiros versos da primeira elegia: Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o Anjo é terrível. (Tradução de Maria Teresa Dias Furtado.) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Tempo e granito

A “vila” que serve de cenário a Húmus , de Raul Brandão, pode ser qualquer vila ou cidade. É uma pura abstracção: “A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro”. Mas desde a primeira linha que não consigo deixar de pensar no Porto, cidade onde o escritor nasceu e que ele conhecia bem. (Esta mania de os leitores precisarem de pontos de referência para não perderem o pé. Um leitor de Guimarães dirá que se trata de Guimarães e ninguém poderá negá-lo.) A vila de Húmus é feita de granito, um “granito salitroso”, erguendo-se sobranceira ao mar (o mar é uma ficção minha). Granito que impõe ao texto um tom duro, cinzento e escuro. “Estátuas de granito a que o tempo corroera as feições.” A pedra do Porto que é feita de quartzo, feldspato, mica e tempo. Camadas de tempo que se acumulam umas sobre as outras, num longo e lento trabalho que se repete infindavelmente: “Passou um minuto ou um século?” E a humidade que se apodera de todas as coisas, vivas e mortas: “A humidade entranhou-se n

Raul Brandão, 150 anos

Para ti, nada é sagrado

LÉON - Ó Mamã, evitemos os dramas à Ibsen, com toda aquela tragédia tramada acerca das profissões das personagens e das deficiências de cada uma. Prefiro as tragédias de sopa fria à Strindberg. A MÃE - Para ti, nada é sagrado. Tratas o Ibsen e o Strindberg tão mal como me tratas a mim. Stanislas Witkiewicz, A Mãe . Tradução de Luiz Francisco Rebello.

Da garrafa saem vapores espirituosos

São trinta páginas. Facilmente poderíamos dizer que "Três horas esquerdas" de Daniil Kharms é um livro pequeno, ou até um livrinho. Desenganem-se, o tamanho é um embuste (de Daniil Kharms, sempre; da editora Flop só para começar), e diminutivos não servem à obra. Os textos de Kharms — é assim que o vou nomear por causa do "h" aspirado, dos tormentos, do charme e de Sherlock Holmes (ler explicação na valiosa apresentação feita pelo tradutor Júlio Henriques) — são densos, quimicamente densos, isto é: em cada um dos 14 textos que compõem o livro há muita matéria concentrada. Kharms é perigoso e escreve como quem lança bombas; desde a primeira palavra, tudo aponta para o desastre — um desastre formidável mas também bastante cómico. E desagradável; desagradável é uma propriedade que Kharms usa como se fosse uma écharpe esvoaçando enquanto ele conduz um descapotável vermelho em excesso de velocidade (é curioso como estas histórias nos deixam impressões visuais tão for

Tartaruga

A porta de casa abriu e dela saiu uma tartaruga. Não exactamente uma tartaruga, como é evidente, mas um velho muito parecido com um desses bichos. – Vou ao mercado comprar pão e leite – disse, avançando sobre as quatro patas, lentas, rotundas e pesadas. Escrevo quatro patas porque, como já disse, havia muito de quelónio no velho. Na realidade, caminhava sobre os dois pés, naturalmente. Mãos nos bolsos para coçar as virilhas, o pescoço todo esticado, a cabeça redonda, os olhinhos miúdos e húmidos, a boca aberta, dois ou três dentes podres, enfim, as papilas gustativas segregando saliva. Muito desejaria ser pintor, um grande pintor, para poder pôr diante dos olhos do leitor as diferentes expressões que todas as partes do seu corpo tomavam ao caminhar. De súbito, mais ou menos a meio do caminho, aconteceu uma coisa singular. Uma coisa realmente singular. Podia escrever que o velho se transformou em lebre. Isso mesmo. De tartaruga em lebre. Podia perfeitamente escrever isso. E que num p

Visões

All fiction writers work by indirection: to show not to tell. Eudora Welty, 1984. É como um exercício de ilusionismo: todos os bons escritores têm um truque. Eudora Welty , que também foi uma excelente fotógrafa, constrói visões espantosas dentro dos olhos do leitor. Visões cheias de cor, textura, pormenor, luz, sombra, mas também, e sobretudo, visões que têm som, cheiro, temperatura, emoções. Visões cheias de vida , mais impressionantes do que fotografias ou filmes, porque é a nossa imaginação que está em movimento. Mais fortes até do que a própria imaginação, porque estão vivas. Uma espécie de outra realidade criada pela ficção. E o leitor mergulha serena e secretamente neste truque assombroso. Nos canteiros de flores saltitavam os piscos do costume. O sistema de rega gotejava agora. Entrámos de novo em casa pela porta das traseiras. As nossas mãos tocaram-se. Pisámos o canteirinho de hortelã-pimenta da Tellie. O gato amarelo esperava para entrar connosco, a maçaneta da porta

Vêm aí os russos

A apresentação do primeiro volume da editora Flop : Três Horas Esquerdas , do vanguardista russo Daniil Kharms, na magnífica tradução de Júlio Henriques, acontece no próximo sábado, 25 de Fevereiro, na  Sede  (Rua de Santa Catarina, 787, no Porto). A tarde começa às 15h00 com caviar e vodka, e às 17h00 há uma leitura pelo actor e performer Nuno Pinto . Contamos com todos.

Sentido de proporção

Acometido pela febre, o jovem Loch Morrison está confinado ao seu quarto. Para passar o tempo, espia a velha casa em frente através de um telescópio. A antiga casa da família MacLain está vazia, mas não abandonada: cruzam-se ali várias histórias, umas criadas pela imaginação de Loch, outras mais reais, como os encontros amorosos entre a adolescente Virgie Rainey e um marinheiro. Na página 33 de As Maçãs Douradas , Eudora Welty faz-nos participar no exercício voyeurístico do rapaz, revelando-nos através da lente do telescópio os transportes secretos dos amantes. A cena é particularmente impressionante pela tensão erótica que Welty consegue criar a partir, uma vez mais , de referências sensoriais e de uma escolha cirúrgica das palavras. Cada palavra encerra uma intenção, cada frase desdobra-se em múltiplos sentidos, símbolos, imagens, planos. E tudo parece simples, claro, transparente. O sentido de proporção de Welty é notável. Loch apontou o telescópio para as traseiras e apanhou o ma

Abarcar tudo num relance

Lendo As Maçãs Douradas , de Eudora Welty (tradução de Diana V. Almeida), alcança-se facilmente o mundo inteiro. Em duas ou três linhas, o leitor tem uma visão plena de um determinado tempo e lugar (uma “visão 360º” ou “surround”, como sói dizer-se hoje em dia). O termo que me ocorre é de uma experiência de “leitura total”. O efeito consegue-se, creio, através de uma fascinante combinação de referências que remetem para os quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Um exemplo retirado da página 31: “Loch podia espreitar através do renque de cedros , onde faltava um, e abarcar tudo num relance – como se lhe pertencesse – desde o alpendre da frente às traseiras, que pareciam um telheiro, e ao gazebo sombrio, que despertava nele um amor completamente diferente, com o seu aroma a folhas negras , que se desfaziam em fuligem , e com a sombra das quatro figueiras , onde ele havia de ir roubar figos , se Julho alguma vez chegasse. E, acima da sombra escura como um barco , faiscava o céu az

Cheirar com os olhos

Outro truque tipicamente weltiano, que contribui para essa sensação de “leitura total” , é a surpreendente combinação de sentidos aparentemente incompatíveis. Um exemplo da página 32 de As Maçãs Douradas : “Com o telescópio colado ao olho [Loch] sentia até o cheiro intenso da casa.” (Sublinhados meus.) Combinando habilmente os cinco sentidos, Eudora Welty inventa novos sentidos. Outra vez: o prodigioso poder da literatura. Eudora Welty é o tema da primeira Acta, a edição exclusiva de ªSede.