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Tartaruga

A porta de casa abriu e dela saiu uma tartaruga. Não exactamente uma tartaruga, como é evidente, mas um velho muito parecido com um desses bichos.
– Vou ao mercado comprar pão e leite – disse, avançando sobre as quatro patas, lentas, rotundas e pesadas. Escrevo quatro patas porque, como já disse, havia muito de quelónio no velho. Na realidade, caminhava sobre os dois pés, naturalmente. Mãos nos bolsos para coçar as virilhas, o pescoço todo esticado, a cabeça redonda, os olhinhos miúdos e húmidos, a boca aberta, dois ou três dentes podres, enfim, as papilas gustativas segregando saliva. Muito desejaria ser pintor, um grande pintor, para poder pôr diante dos olhos do leitor as diferentes expressões que todas as partes do seu corpo tomavam ao caminhar.
De súbito, mais ou menos a meio do caminho, aconteceu uma coisa singular. Uma coisa realmente singular. Podia escrever que o velho se transformou em lebre. Isso mesmo. De tartaruga em lebre. Podia perfeitamente escrever isso.
E que num passo rápido de lebre tinha chegado em dois tempos ao mercado e em dois tempos regressado a casa com o pão e o leite. Mas não foi isso que aconteceu, pela simples razão de que tartarugas não se transformam em lebres.
O que aconteceu foi uma coisa muito mais invulgar. Mesmo correndo o risco de adormecer o leitor, não vou omitir nenhuma circunstância. O que aconteceu foi algo verdadeiramente extraordinário. Algo que não será fácil ao velho esquecer.


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