São trinta páginas. Facilmente poderíamos dizer que "Três horas esquerdas" de Daniil Kharms é um livro pequeno, ou até um livrinho. Desenganem-se, o tamanho é um embuste (de Daniil Kharms, sempre; da editora Flop só para começar), e diminutivos não servem à obra. Os textos de Kharms — é assim que o vou nomear por causa do "h" aspirado, dos tormentos, do charme e de Sherlock Holmes (ler explicação na valiosa apresentação feita pelo tradutor Júlio Henriques) — são densos, quimicamente densos, isto é: em cada um dos 14 textos que compõem o livro há muita matéria concentrada.
Kharms é perigoso e escreve como quem lança bombas; desde a primeira palavra, tudo aponta para o desastre — um desastre formidável mas também bastante cómico. E desagradável; desagradável é uma propriedade que Kharms usa como se fosse uma écharpe esvoaçando enquanto ele conduz um descapotável vermelho em excesso de velocidade (é curioso como estas histórias nos deixam impressões visuais tão fortes e tão despropositadas).
Tentei escolher um texto preferido, mas a tarefa revelou-se difícil. Gosto de alguns pela concisão, de outros pelo inesperado, pelo tom macabro ou pelos finais abruptos. Escolhi "Púchkin e Gogol" nem sei bem porquê — enfim, aqueles dois tropeçando sucessivamente um no outro parecem um número de music-hall e fazem-me rir imenso. Depois troquei-o por "Um espectáculo falhado" — não um falhanço melhor mas um falhanço sem ambição, um genuíno fiasco vomitado. Bravo! A seguir foi a lengalenga musical d' "O matemático e Andrei Semionóvitch". E acabei nas últimas páginas a optar pel' "O impedimento" por causa dos diálogos e do ambiente sórdido? ameaçador? ainda Harold Pinter andava de calções.
Devia terminar aqui nas preferências, elogiar o trabalho gráfico do Luís Nobre (o título invertido na capa põe-nos logo de guarda para o que há de vir) e dos restantes destemidos da Flop, apelar à leitura compulsiva/recorrente de "Três horas esquerdas" e sair desta recensão com um corte implacável. Mas há mais uma coisa, o livro de Kharms deixa uma sensação esquisita dentro de nós, uma moideira, vem das palavras de Júlio Henriques sobre a vida de Kharms e permanece depois do riso e dos malabarismos; enterra-se e fere.
Cristina Fernandes.
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