A arte pode ser feita por programas de computador? Ou ela requer alguma dimensão específica e irredutivelmente humana?
Tendemos a pensar que a arte é o reduto último de afirmação da irredutibilidade de nossa espécie; portanto, uma justificação inexpugnável de sua singularidade, senão de sua superioridade. (...)
A filosofia da composição, de Edgar Allan Poe, revelou o quanto de pensamento crítico e consciente está em jogo durante o processo de criação (menos misterioso e inspirado do que se queria, portanto); nos poemas destituídos de eu lírico de Mallarmé, a própria linguagem parece ser o sujeito que escreve; nas Iluminações de Rimbaud já não se descreve nenhuma realidade factual ou externa, mas puras paisagens mentais; os artigos de Proust contra Sainte-Beuve, o crítico biográfico, observam que o eu civil do artista não se confunde com o eu da obra; os formalistas russos, já no início do século XX, inauguraram uma concepção radicalmente material da linguagem; há ainda a boutade precisa de Gide (“Com bons sentimentos se faz má literatura”); daí ao estruturalismo e, logo, à anunciada morte do autor por Barthes.
O sentido geral dessa movimentação histórica é a ideia de que arte não se faz com sentimentos, experiências biográficas ou favor dos deuses – arte se faz com linguagem, com conhecimento do material, isto é, da tradição de seu uso nas obras anteriores. Assim, quando Barthes proclama a morte do autor, é da imagem do autor como eu biográfico que se trata. “Não importa quem fala”, fala o personagem de Beckett citado por Foucault – importa o que fala, como fala. O artista é alguém que conhece seu material, estuda as obras passadas, reinterpreta-as, mistura-as, combina diversos códigos, e assim tenta produzir uma diferença, valor supremo da arte moderna. A originalidade, portanto, não é uma criação ex-nihilo, mas sim efeito de uma mistura imprevista, insuspeitada dos elementos da tradição.
Se admitirmos isso, que a originalidade é o valor supremo da arte moderna, e que ela é produzida por meio de combinações insuspeitadas da tradição, podemos retomar o problema da autoria dos computadores. Pode um computador produzir uma obra de arte original? (...) Pode um computador produzir o salto, o insight, o lance de dados genial que quebra um paradigma, instaura uma nova forma, apresenta ao mundo uma diferença, um acontecimento? (...) Será que o que compreendemos como subjetividade – com seus corolários de emoção e afeto – em obras de arte não é apenas o efeito de determinadas combinações de notas, acordes, palavras, timbres de voz? E que assim, consequentemente, não é preciso uma subjetividade que as torne possível, mas meramente combinações que produzam seu efeito? Ou será que há alguma dimensão – a consciência, a sociabilidade – irredutivelmente humana que produz, e só ela produz, obras de arte originais, e também as reconhece como tais?
Francisco Bosco, na revista Cult deste mês (a totalidade do artigo não está online).
Leitura de apoio para a conferência de Marinela de Freitas, sábado, 18 de Março, pelas 17h00, na Sede.
A filosofia da composição, de Edgar Allan Poe, revelou o quanto de pensamento crítico e consciente está em jogo durante o processo de criação (menos misterioso e inspirado do que se queria, portanto); nos poemas destituídos de eu lírico de Mallarmé, a própria linguagem parece ser o sujeito que escreve; nas Iluminações de Rimbaud já não se descreve nenhuma realidade factual ou externa, mas puras paisagens mentais; os artigos de Proust contra Sainte-Beuve, o crítico biográfico, observam que o eu civil do artista não se confunde com o eu da obra; os formalistas russos, já no início do século XX, inauguraram uma concepção radicalmente material da linguagem; há ainda a boutade precisa de Gide (“Com bons sentimentos se faz má literatura”); daí ao estruturalismo e, logo, à anunciada morte do autor por Barthes.
O sentido geral dessa movimentação histórica é a ideia de que arte não se faz com sentimentos, experiências biográficas ou favor dos deuses – arte se faz com linguagem, com conhecimento do material, isto é, da tradição de seu uso nas obras anteriores. Assim, quando Barthes proclama a morte do autor, é da imagem do autor como eu biográfico que se trata. “Não importa quem fala”, fala o personagem de Beckett citado por Foucault – importa o que fala, como fala. O artista é alguém que conhece seu material, estuda as obras passadas, reinterpreta-as, mistura-as, combina diversos códigos, e assim tenta produzir uma diferença, valor supremo da arte moderna. A originalidade, portanto, não é uma criação ex-nihilo, mas sim efeito de uma mistura imprevista, insuspeitada dos elementos da tradição.
Se admitirmos isso, que a originalidade é o valor supremo da arte moderna, e que ela é produzida por meio de combinações insuspeitadas da tradição, podemos retomar o problema da autoria dos computadores. Pode um computador produzir uma obra de arte original? (...) Pode um computador produzir o salto, o insight, o lance de dados genial que quebra um paradigma, instaura uma nova forma, apresenta ao mundo uma diferença, um acontecimento? (...) Será que o que compreendemos como subjetividade – com seus corolários de emoção e afeto – em obras de arte não é apenas o efeito de determinadas combinações de notas, acordes, palavras, timbres de voz? E que assim, consequentemente, não é preciso uma subjetividade que as torne possível, mas meramente combinações que produzam seu efeito? Ou será que há alguma dimensão – a consciência, a sociabilidade – irredutivelmente humana que produz, e só ela produz, obras de arte originais, e também as reconhece como tais?
Francisco Bosco, na revista Cult deste mês (a totalidade do artigo não está online).
Leitura de apoio para a conferência de Marinela de Freitas, sábado, 18 de Março, pelas 17h00, na Sede.
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