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Partitura

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende I O que mais impressiona é a música. Uma música de fundo, sempre presente, como um ostinato. Uma onda vagamente melancólica, que ecoa por toda a parte, num volume próximo do silêncio. Como um murmúrio, um sopro, um lamento. Uma música que nada exige, que não se impõe, não grita, que apenas se vai instalando, pouco a pouco, sem pressas, dentro do ouvido. A sempiterna e desolada música que atravessa os séculos. É o leve clamor do nosso desespero, o baixo contínuo do nosso destino mortal.  Não fosse tão difícil morrer tão lentamente. (Eu Canto os Momentos Nativos.)

De tanto serem repetidos é como se tivessem realmente acontecido

[Karl] Kraus é, nesse contexto, um intérprete mortal para os mitos que circulam [sobre os verdadeiros motivos para o deflagrar da I Guerra]? Uma das coisas que o Kraus mostra é como se gera essa cultura de violência, e como os principais responsáveis, aos olhos dele, são as pessoas que lidam com as palavras. Os intelectuais, os escritores, os jornalistas, etc. Personagens com bastante proeminência e que são, justamente, aqueles que têm a responsabilidade pelo discurso que se produz, que o usam irresponsavelmente, e transformam também as palavras em armas. Pode dar um exemplo? Um dos aforismos que surge nos "Os Últimos Dias da Humanidade" diz-nos: «Um despacho noticioso (ou uma notícia de jornal) é um instrumento de guerra como a granada, que também não toma quaisquer factos em consideração». Quando hoje em dia se fala na pós-verdade, tinha já lido tudo isso no Kraus. Quando foi para a frente a guerra no Iraque, em que os editorialistas… José Manuel Fernandes, toda essa ge

Terminar é começar

Uma linha pode ter um princípio e um fim. Um círculo não tem uma coisa nem outra. O círculo é um movimento perpétuo. Como a Terra que gira em torno de si mesma e em torno do Sol. Como a lua que gira em torno da Terra e todas as luas que giram em torno dos planetas. Como todos os planetas que giram em torno de si mesmos e em torno do Sol. Toda a vida é circular. Eis a lei inescapável. Nascemos, vivemos, morremos e da nossa matéria surgirá outra vida, e desta outra ainda. Ou digamos que o fim precede o princípio, E que o fim e o princípio estiveram sempre ali Antes do princípio e depois do fim. E tudo é sempre agora. (T. S. Eliot, Quatro Quartetos .) O mundo gira sobre si mesmo, o mundo novo e o mundo velho, o mundo velho e o mundo novo, e todos repetimos o mesmo movimento. Giramos sobre nós mesmos, numa espécie de instinto de defesa, que inevitavelmente nos afasta do mundo. O mesmo acontece com as sociedades, as regiões, os continentes, a política. O círculo define uma fronteira

341 - O peso mais pesado

E se, um dia ou uma noite, um demónio se viesse introduzir na tua suprema solidão e te dissesse: «Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar; sem nada de novo; muito pelo contrário! A menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande e de indizivelmente pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, segundo a mesma impiedosa sucessão... esta aranha também voltará a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!...» Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando esse demónio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: «Tu és um deus: nunca ouvi palavras tão divinas!» Se este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e

Obras ricas em fosfato

Fechou as pastas e, desorientado, voltou a ceder à depressão. A fim de mudar a direcção das suas ideias, experimentou ler alguma coisa que o acalmasse e, na esperança de arejar o cérebro, recorreu a narcóticos literários, aquele tipo de livros que mais cai nas boas graças dos convalescentes e dos inválidos que não podem cansar-se com obras mais tetânicas e mais ricas em fosfato: os romances de Dickens. Mas estes volumes produziram um efeito contrário ao que ele esperava: as suas amantes castas, as suas heroínas protestantes vestidas até ao pescoço, andavam nas estrelas e não iam para além de um baixar de olhos, de um corar, de um chorar de alegria e de um apertar de mãos. Esta pureza exagerada logo o precipitou num excesso oposto. Joris-Karl Huysmans, Ao arrepio . Tradução de Daniel Jonas.

Of course he shot a fucking elephant

George Orwell’s biographer Bernard Crick lunched with the author’s widow, Sonia, at Bertorelli’s in London. They were talking about “Shooting an Elephant,” or, more accurately, about whether Orwell really did shoot an elephant in Burma. “‘Of course he shot a fucking elephant,’ Sonia shouted. ‘He said he did. Why do you always doubt his fucking word?’” Because, Crick replied, “he was a writer, not a bloody cub reporter.” Geoff Dyer, Nothing But - The untruths of memory.

Explicação do mundo

Na arqueologia mexicana cada estátua, cada objecto, cada baixo-relevo, significam alguma coisa que significa alguma coisa que por sua vez significa alguma coisa. Um animal significa um deus que significa uma estrela que significa um elemento ou uma qualidade humana e assim sucessivamente. Estamos no mundo da escrita pictográfica, os antigos Mexicanos, para escreverem, desenhavam figuras e, mesmo quando desenhavam, era como se escrevessem: cada figura apresenta-se como um enigma a decifrar. Italo Calvino, Palomar . Tradução de João Reis.