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Cansaço

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende IX Haverá instrumento, aparelho, tecnologia, capaz de medir o nosso cansaço? Não se trata só de um cansaço de mundos, como em Álvaro de Campos, mas de todo o cansaço do mundo. «Para que serviram/ Tantos olhos entornados,/ Tanto requebro no corpo, tanta catedral, tanta obra de arte?/ Tanto filósofo enjoado?» Uma  corrida  universal contra o tempo, para chegarmos, na melhor das hipóteses, ao exacto ponto de onde partimos. Porque todos somos Ulisses e Ítaca fica em toda a parte. O mundo é velho, como um barco velho, e as tentativas para o mudar pouco mais engendram do que cansaço. E o que fazer senão voltar a partir e regressar outra vez, e partir de novo e outra vez regressar? Pireu! A cena está posta: os poucos haveres, tenho-os num saco, e o saco no convés, e o corpo vazado num cansaço espesso e vagaroso, E vou, sem amor e sentimento, só ir, por esse roxo mar que Ulisses navegou. A cena está posta e juro que, dentro do peito, que digo eu

Amor

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VIII E se o mundo é isto , «tanta gente a passar aos poucos», o que sobra? O amor? Mas «qual amor»? O amor aos fins-de-semana e feriados? O amor depois do trabalho, dos transportes, das filas no supermercado, do jantar, do telejornal, da louça lavada e posta a secar, da cama gelada e por fazer, da marmita para o dia seguinte? O amor dos «heróis do lar, humilhados e mal queridos»? Este é o amor que nos foi dado viver: o amor que avança «em seu ritmo por inércia». não digas nada nada est -  amos cansados subimos e descemos vivemos melhor e pior bem e mal bem e mal cala-te agora um pouco um pouco dá-me um cigarro e apaga a luz fala mais devagar não há dinheiro não há direito não há ar des abrido s u focado s ó só podemos amar das dez à meia-noite (Qual Amor?)

A fair field full of folk

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VII Um grito indomado cerca a terra toda; é a revolta dos escravos. (Um Dia de Vida.) Quantas vezes na poesia de hoje lemos a palavra «escravos»? Quantas vezes a palavra «oprimidos»? E «povo»? A despeito dos seus possantes pulmões e grossos punhos, o grande espectro já não paira sobre a Europa e o mundo, esfumou-se, e o ar ficou ainda mais irrespirável. Dele restam milhões de sementes de angústia, plantadas no texto, como intermináveis reticências. Sementes significativas, mas é tudo, e esse tudo não é suficiente. Juro que acreditei e acredito Na força imensa das massas populares. Eu sou dessa massa - e que doutra massa seria? Só no mundo, mesmo que esteja só no mundo, Outra coisa não posso dizer, nem outra língua falar. O homem é uma coisa Que há-de ter de ser. (Escrever nas Costas.)

O homem da câmara de filmar

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende VI E há momentos em que o ritmo acelera, a marcha avança, vertiginosa, até ao fundo do século XX. O leitor corre por dentro do filme de Vertov, numa louca e febril espiral com Maiakovski e Rodchenko. Mas o olho do poeta vê mais do que o olho da câmara. Vê a imagem e o que está por trás dela, o objecto e o seu avesso de minuciosas rodas dentadas, o homem e o seu desespero cor de fogo, o homem e a sua insondável solidão. Eia pontes! Eia gruas, braços arranhando o nevoeiro dos portos! Eia formigamento de braços moles aguentando a estiva contra o peso e o sol! Eia suor, eia rumor, ronronar, triturar, estuar, estourar abrir das ostras e da noite, eia súbito lançamento da manhã, eia multidão invadindo as ruas, invadindo os transportes, os portos, a alma, os olhos, invadindo tudo! Eia! Tinir das chaves de fenda, borbulhar do ferro em brasa, chispas de aço fendendo a escuridão Eia! Proteína da argamassa, cimento, estuque, fermento dos seis

Surrealismo

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende V Não é preciso revolver as páginas para encontrar as longas e cintilantes raízes do surrealismo. Estão por toda a parte, no fundo e à superfície. «Vidros arestas peixes epilépticos»; «ali no marulhar das tardes barbitúricas.» As raízes do surrealismo, engenhosamente combinadas com humor, referências clássicas, citações bíblicas, acontecimentos, realismo . Se a palavra não é sinónimo directo de liberdade é pelo menos o instrumento possível para a alcançar. Um insulto atirado à cara da História. A resistência também se faz com a gramática, o papel e as palavras, as furiosas pedras que nos restam. Até que ponto pode chegar um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos? – a frase que poderemos intitular de central. E esta posição de abjecção, de desespero irresignável, leva-nos à única posição válida: – SOBREVIVER, mas Sobreviver LIVRES. António Maria Lisboa, Erro Próprio .

Poesia do real

Breves notas sobre a poesia de Manuel Resende IV Toda a poesia é do real. Toda a poesia é do quotidiano. Sentir e pensar são reais. O absoluto e o relativo são reais. O bem e o mal. Deuses e demónios também são reais. O sonho é real. O mistério é real. Os pequenos acontecimentos são reais. São reais as cidades, as aldeias, os campos, os cafés, as filas de trânsito, as salas de espera dos hospitais, o turismo. São reais o crime, o genocídio, o fogo amigo, os danos colaterais. Os bancos, as taxas de juro, a dívida. O suicídio é real. A história também. É tudo tão real que o mundo é uma ferida aberta em cada um de nós. E o pouco alívio que a poesia nos dá, não é pouco, é muito. Ocupamos um território de gestos apalpamos à nossa volta um estádio de liberdade Passam mendigos sapateiros mulheres homens concretos mineralogia urbana em seus passos comedidos despidos até por dentro cauteleiros mancos por não poderem ser mais nada  Que vêm aqui fazer por uns minutos a esta praça Homens m