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Excesso de arte

Este grande homem seria o espanto de todas as nações se tivesse um estilo mais agradável, se não estragasse as suas composições com coisas bombásticas, grandiloquentes e intricadas, e se o excesso de arte não escondesse a beleza. Adolf Scheibe a propósito de Johann Sebastian Bach.

Final aberto

A confeitaria ao lado de minha casa onde compro pão todas as manhãs, fechou. É uma daquelas confeitarias que estão abertas aos domingos e feriados, incluindo os dias de Natal e Ano Novo. É a primeira vez, em dez anos, que vejo aquela porta fechada à luz do dia. Não há um aviso, uma explicação. O que terá acontecido? Parece um filme com final aberto. Talvez um Kiarostami.

Influenciadores do século XX

Outro tempo

Os dias estão mais curtos e a temperatura desceu. Mas ainda há pequenos insectos de outro tempo dentro de casa: melgas, mosquitos, borboletas minúsculas. Parecem anestesiados pelo frio. Colados às paredes, muito lentos, à espera de um qualquer milagre que nunca virá. São fáceis de apanhar.

Não é poesia

“Quando os índios falam que a Terra é nossa mãe, dizem ‘Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita’. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos terminal nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra, desorganiza o nosso mundo.” Ailton Krenak.

Grande herbário de sombras

Os passeios e as ruas andam cobertos de folhas caídas e encharcadas. Quando os varredores vêm e recolhem as que o vento ainda não arrastou para longe, ficam as suas cópias: imagens impressas no chão através de uma delicada tinta castanha, que persiste bem visível durante algum tempo. São os fantasmas do Outono passado. O grande herbário de sombras das cidades.

Aura

De vez em quando, sou atacado por um tipo de enxaqueca menos comum chamada «enxaqueca com aura». No meu caso, o problema manifesta-se através de alterações da visão. Durante o tempo que dura a enxaqueca — nunca mais de uma hora —, tudo à minha volta parece terrivelmente brilhante, com as cores muito vívidas e nítidas. A um ponto que se torna insuportável. Ninguém consegue ver o mundo com tanta nitidez. Quando a aura se revela, convém tomar rapidamente uma aspirina.

Chuva

Uma semana inteira de chuva miudinha, pesada e muda. Os dias parecem não ter fim. As nuvens cobrem as casas como mãos enormes, lentas, ameaçadoras. A cidade parece mergulhada no fundo de um abismo, com a vida, a verdadeira vida, a correr muito acima.

Tem outro nome

A influência de Ozu nos filmes de Pedro Costa não é só cinematográfica. Há o plano da chuva a cair nas telhas (Griffith  remix ). Os objectos vulgares filmados com a gravidade do ouro, incenso e mirra. As relações entre pais e filhos, reais ou inventadas. O modo como os corpos se movimentam nos quartos. Todas essas disposições unem os dois cineastas desde Vanda. Com o tempo, porém, apercebo-me que a ligação a Ozu é mais íntima, é antes do que se vê (também no cinema, nem tudo passa pelos olhos). Está relacionada, talvez, com o hábito japonês de descalçar os sapatos à porta? Não é só Vitalina descendo as escadas do avião com os pés nus, não é só neste filme. À semelhança das personagens discretas de Ozu, Pedro Costa entra sempre descalço na casa de cada um. Isso não se aprende numa escola de cinema, nem sequer no confronto com a matéria cinematográfica. Tem outro nome.

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.

A arquitectura de “Vitalina Varela” é sem arquitectos; oscila entra Jorge Luis Borges e brutalismo orgânico (ver edifício da igreja).

Tudo se esclarecia — vale e serra

Chove muito, a água corre nas ruas como um riacho. Mas não está frio. Nem há vento. As pessoas estão mais caladas e mais bonitas — têm sono. As mulheres trazem molhos de crisântemos nos braços para o dia dos mortos. Sem saber, a cidade prepara-se para receber Vitalina Varela.

uma arte de vagabundos superiores

Que respeito pelos objectos. Cada um tem beleza própria porque é «único», possui o insubstituível. Mas não se trata de arte social, a arte de Giacometti, só por ele estabelecer laços sociais entre objectos – o homem e as suas secreções –, será antes uma arte de vagabundos superiores, a tal ponto puros que apenas o reconhecimento da solidão de cada ser e de cada objecto os uniria. «Estou só, parece dizer-nos o objecto, cativo de uma necessidade contra a qual nada podeis. Se não fosse o que sou, seria indestrutível. Sendo o que sou, e sem reservas, a minha solidão reconhece a vossa.» Jean Genet, "O Estúdio de Alberto Giacometti", tradução de Paulo Costa Domingos, Assírio & Alvim, março de 1988.

não fluida, antes pelo contrário, muito dura

Se pronunciei atrás «… aos mortos» foi afinal para que essa multidão anónima veja agora tudo quanto não pôde ver em vida, agarrada que estava aos ossos. Pois é preciso uma arte – não fluida, antes pelo contrário, muito dura – dotada do estranho poder de penetrar os domínios da morte, capaz de se infiltrar pelas paredes porosas do reino das sombras. A injustiça – e a nossa dor – seriam demasiado grandes se um único nessa multidão fosse impedido do contacto com alguém entre nós, e bem pobre será nosso triunfo se apenas nos conduz a uma glória futura. A obra de Giacometti transmite ao povo dos mortos o conhecimento da solidão de todos os seres e de todas as coisas, solidão, nossa mais certa glória. (…) Solidão, como eu a entendo, não designa estatuto de miséria mas secreta soberania, nem profunda incomunicabilidade mas conhecimento mais ou menos obscuro de uma singularidade intocável. Jean Genet, "O Estúdio de Alberto Giacometti", tradução de Paulo Costa Domingos, Assírio

Bairro

Ontem, na antestreia de «Vitalina Varela» , no Trindade, não havia uma pessoa negra na plateia. Era uma sala branca, burguesa, vagamente caviar. Depois do filme e das fotos para o instagram, toda a gente saiu para beber um copo, reservar mesa no restaurante, e trocar umas ideias sobre a Vitalina e o Ventura. Eu incluído.

Porto

Recomeçou a chover. As ruas esvaziaram-se de turistas. Desço a Lapa até à Baixa sem me cruzar com praticamente ninguém. De repente, a cidade retoma o tom cinzento, triste, belo. A cidade que, em dias de sol e de turismo, já só existe nas traseiras ou na nossa memória.

Nem te espera no negro crepúsculo uma fera

Antestreia de "Vitalina Varela" de Pedro Costa, com a presença do realizador e seguida de debate com o público, moderado por Daniel Ribas. Hoje, às 19:00, no cinema Trindade.

É veneno!

Os filmes do Pedro Costa dão luta, podemos andar dias, meses, anos, a remoer em certos planos ou até mesmo em pormenores; uma palavra gritada, uma cruz que se apanha do chão. É tudo muito lúgubre, muito rico, muito condensado, muito misterioso. Trabalhamos sobre possibilidades ambíguas. Tentamos construir hipóteses de caminho. Com sorte, descobrimos que o céu é debaixo da terra. Quando Vitalina sobe ao telhado, lembra as mulheres dos filmes Ford — Maureen O’Hara com os cabelos e têmpera do fogo. Essa é a primeira impressão. O reconhecimento de uma ligação dá algum consolo, mas depressa se esvai a segurança. O que o plano tem de vigoroso não é cinéfilo nem alivia. É no sentido contrário, por isso é preciso continuar a procurar mais fundo a origem da inquietação. Talvez a tensão extraordinária dessa imagem venha do método de trabalho, do modo como a câmara responde a Vitalina. Como se todas as questões técnicas — ângulo, enquadramento, luz, sombra, vento — representassem o mesmo des

O que é que isto quer dizer?

Não é fácil escrever sobre “Vitalina Varela”. Mas em vez de debitarem frases imbecis (“Visão arrebatadora e magistral entre o horror e o melodrama, a espiritualidade e o desespero.” / “Um retrato da natureza consumidora do amor e da beleza da solidariedade feminina.”) , talvez fosse preferível os júris dos festivais atribuírem os prémios com um simples agradecimento.

Golpe de raio

Quando escrevi sobre “Vitalina Varela” não consegui dizer nada sobre o plano em que ela sobe ao telhado. Há imagens assim; mais do que significados, têm uma energia que nos deixa a ferver por dentro e sem coragem para dar um passo. Ainda não desisti.
Com a pompa habitual das empresas tecnológicas, a Google anunciou que atingiu a  supremacia quântica . Não é necessário tanto alvoroço por causa de bits que são zeros e uns ao mesmo tempo. Avisem quando o Sycamore conseguir escrever um limerick que nos faça rir.