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Mensagens

Olha

olha (é assim que a minha criança mais nova começa quase todas as frases, mesmo que não queira mostrar nada, o mais das vezes quer apenas que a olhemos quando fala e eu acho isso de grande justiça). De uma mensagem enviada por uma amiga.

Exercícios práticos de filosofia

Resolvi ensaiar em casa aquela cena de abrir um livro de Cioran à sorte , à procura de um lema para o dia que começa . Como não tenho nenhum livro de Cioran em papel, peguei em “Cultura e Valor” de Wittgenstein. Também é apropriado à função — as notas são breves e cheias de possibilidades. Abri e encontrei: “Onde os outros avançam, fico eu parado”. Levantei-me, tomei banho e fui comprar fruta ao Campo 24 de Agosto.

Trabalhar em casa

Anch’io avevo creduto per un momento che il cinema autorizzasse Orfeo a voltarsi senza far morire Euridice. Mi sono sbagliato. Orfeo dovrà pagare.

Anjo exterminador

Sete dias fechado em casa. A impressão é a de que estou dentro da cabeça de Buñuel, simples títere da sua imaginação, actor involuntário de «O Anjo Exterminador».

o arco do qual se disparam flechas

À partida, quando olhamos para as palavras latinas «corōna» e «vīrus», diríamos que nada têm a ver uma com a outra: a primeira tem como sentido primário «grinalda», «coroa»; a segunda tem como sentido primário «veneno». No entanto, na utilização mais antiga que se conhece destas duas palavras, elas estão estranhamente ligadas por um denominador comum: o arco do qual se disparam flechas. “Corōna” e “vīrus” em tempo de coronavírus , de Frederico Lourenço ( via João Lisboa )

Gerações futuras

Ontem contaram-me esta história. Nos anos 70, quando os agricultores de Lintong, em Xi'an, na China, descobriram as primeiras estátuas de terracota do chamado «Exército do imperador Qin», os arqueólogos vieram e desenterraram várias centenas, entre guerreiros, cavalos e carruagens. Depois, e apesar de existirem muitas outras, pararam os trabalhos. As autoridades decidiram deixá-las como estão para que as gerações futuras também tenham estátuas para desenterrar.

O vírus é a música

A progressão de um vírus implacável sobre fundo primaveril (folhas, flores, pássaros) Ah, isto é o que Jean Renoir dizia: "Por que raio é que, numa cena de amor em que o actor diz à actriz je t'aime a música também há-de dizer je t'aime ? Porque é que a música não diz estou-me nas tintas para ti?" O vírus é a música.

Pulverizador

Passamos os dias em casa, desconfiados, vigilantes, sem dormir. Andamos atrás do vírus pelas divisões da casa, apontando um pulverizador para o vazio como se fosse um revólver. Verificamos atrás das portas, por cima dos armários, entre os lençóis da cama. Prontos a disparar. Mas o vírus é mais rápido do que a própria sombra. É a própria sombra.

Le savon

Roanne, avril 1942. Si je m'en frotte les mains, le savon écume, jubile... Plus il les rend complaisantes, souples, liantes, ductiles, plus il bave, plus sa rage devient volumineuse et nacrée... Pierre magique ! Plus il forme avec l'air et l'eau des grappes explosives de raisins parfumés... L'eau, l'air et le savon se chevauchent, jouent à saute-mouton, forment des combinaisons moins chimiques que physiques, gymnastiques, acrobatiques... Rhétoriques ? Il y a beaucoup à dire à propos du savon. Exactement tout ce qu'il raconte de lui-même jusqu'à la disparition complète, épuisement du sujet. Voilà l'objet même qui me convient. * Le savon a beaucoup à dire. Qu'il le dise avec volubilité, enthousiasme. Quand il a fini de le dire, il n'existe plus. * Une sorte de pierre, mais qui ne se laisse pas rouler par la nature : elle vous glisse entre les doigts et fond à vue d'oeil plutôt que d'être roulée par les eaux. Le jeu

Persistência dos sintomas

O que não conhecemos, assusta-nos. O que não sabemos explicar, assusta-nos. O que não conseguimos prever ou dominar, assusta-nos também. Aquilo que é assusta-nos tanto como aquilo que não é. O que não foi é tão assustador como o que podia ter sido. A dúvida é sempre mais forte do que a certeza. Os factos podem ser tão assustadores como as impressões de certos sonhos em noites agitadas. Por isso, criámos a literatura e a arte. Por isso, criámos deus. Para o alívio dos sintomas, tomamos um ou outro, ou vários em simultâneo, segundo a dose que nos convém.
Arthur Jafa, "Monster", 1988.

Domingo

O bairro está deserto. As gaivotas desceram dos telhados e ocuparam os passeios. Andam para a frente e para trás como turistas pasmados. Conseguimos ouvir o melro e o vento a sacudir os ramos da magnólia. Um caracol pode atravessar a rua sem perigo.

Papel higiénico

Há três dias que uma onda de pânico varre, sem parar, os supermercados. No nosso bairro, não há vegetais, carne, enlatados e papel higiénico. De papel higiénico, não resta a sombra de uma embalagem. As prateleiras vazias conduzem-me de novo, e por caprichosos caminhos, a Artaud. Onde cheira a merda cheira ao ser. O homem poderia muito bem não cagar, não abrir a bolsa anal, mas ele escolheu cagar tal como escolheria viver em vez de aceitar viver morto. Pois para não fazer caca precisaria de aceitar não ser, mas ele não quis optar por perder o ser, ou seja, morrer vivo. (...) Antonin Artaud, Para acabar de vez com o juízo de Deus e outros textos finais (1946-1948) . Tradução de Pedro Eiras.

Quarentena

Fechados em casa, de quarentena, passamos uma parte da noite a ver Beuys , que passou na televisão. Ruas cheias de gente, manifestações, ocupações, performances em espaços fechados, um debate com críticos de arte e académicos numa sala a abarrotar, toda a gente a fumar, a partilhar copos, Beuys alagado em suor. Em menos de uma semana, tudo isto parece ter-se transformado em arqueologia. Provas de um tempo longínquo. Foi ontem.

Orientação a partir de Cioran

Outro homem, tímido e gentil, quando viajava em serviço, levava sempre consigo um livro de Cioran, um daqueles com textos muito breves. Já no hotel, guardava-o na mesa-de-cabeceira e, mal acordava, abria-o ao acaso e, assim, encontrava o lema para o dia que começava. Aliás, ele era de opinião que, na Europa, os exemplares da Bíblia existentes nos hotéis deviam ser substituídos quanto antes por livros de Cioran — desde a Roménia até à França — porque, no que toca a vaticínios, a Bíblia já perdera a sua actualidade. Que ganhamos nós se, por exemplo, incautamente nos calhar o seguinte verseto numa sexta-feira de Abril ou numa quarta-feira de Dezembro? “Todos os utensílios destinados aos serviços do santuário, todas as suas cavilhas, e todas as cavilhas do átrio serão de cobre” [Ex 27-19]. Como é que haveríamos de interpretar este texto? Aliás, ele próprio reconhecia que os livros não tinham de ser forçosamente de Cioran e, olhando com ar de desafio, sugeriu: — Faça o favor de me propor o