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Mais actividades lúdicas

Sempre considerei a “escrita feminina” um conceito literário parvo e sem interesse. Mas agora que ando a reler — muito devagar, nunca mais do que um por dia — os contos tardios da Flannery O’Connor, resolvi reabilitá-lo por algum tempo. Uma técnica de provocação que aprendi ontem com Rufus Johnson.

Máscara

Os jornais dão conta de que o uso de máscara vai ser obrigatório em múltiplas situações. É impossível não pensar no teatro. De um momento para o outro, somos forçados a usar máscara para continuar a desempenhar o nosso papel na grande representação do mundo. O teatro já não imita a vida. É a vida que imita o teatro. DUQUE SÉNIOR Bem vês que não estamos sós no infortúnio: Este teatro imenso e universal Tem representações mais lastimáveis que a cena Em que entramos. JAQUES O mundo é um palco E todos os homens e mulheres simples actores: Têm as suas saídas e entradas, E, em vida, um só homem tem vários papéis (...). Shakespeare, Como vos aprouver. Tradução de Fátima Vieira.

Estado de excepção

Prolongar a “Memória e Esquecimento”, adiar a “Velocidade, Aceleração”. A revista Electra está a comportar-se à altura das circunstâncias.

Vizinho

Não sei o nome. É o homem que passa a manhã à janela, no prédio em frente. Começámos a cumprimentar-nos com um gesto silencioso de mão e um sorriso tímido de cortesia. A pandemia devolveu-nos alguns gestos, mas também algumas palavras. As palavras «janela», «vizinho», «rua», «bairro». Ou o termo «redes sociais». Pouco a pouco, entre uma janela e outra, de um lado ao outro da rua, limpamos a gordura que se acumulou sobre as palavras e redescobrimos a sua pureza.

Revolução

Chega sempre um dia em que as coisas mudam, explica o personagem Rublev, no epílogo do monumental O caso do camarada Tulaev , de Victor Serge. A Revolução é uma aventura e um risco. «Para o mundo exterior, tão sedento de estabilidade», manter em aberto a grande pergunta sobre o sentido da vida é uma audácia demasiado perigosa. «[Nós, os revolucionários de 1917,] exigíamos a coragem de prosseguir as façanhas, mas o povo queria segurança, descanso, esquecer o esforço e o sangue.» Robert Kramer diz qualquer coisa bastante parecida em Outro País , o filme de Sérgio Tréfaut sobre o 25 de Abril: «É uma situação muito perigosa, assustadora, caótica, que nos pode explodir na cara. Historicamente, a riqueza da experiência humana é elevada por esses momentos. São muito instáveis. Aparentemente, as pessoas não aguentam viver assim por muito tempo.» No ciclo cardíaco, uma sístole é seguida de uma diástole. E depois de uma diástole vem necessariamente uma sístole. Em que ponto da história estamos

25 de abril

A CMTV desapareceu da grelha de canais cá em casa. Deve ser uma comemoração espontânea do 25 de abril. —— Voltei atrás para confirmar, Jerónimo de Sousa disse mesmo “salamizar” quando comentou o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa. Não encontrei a palavra no dicionário, mas apenas por distração dos lexicógrafos pois “salamizar” e “salamização” já têm um percurso histórico e materialista . —— Jerónimo de Sousa ofereceu-nos ainda uma definição do 25 de abril formidável: (não deixaremos de comemorar, celebrar, aquele que foi)  o acto mais moderno e avançado da nossa época contemporânea . —— A fotografia de José Sena Goulão . A bandeira é enorme e pesada, mas o olhar foge-me para o saco de plástico branco na mão esquerda.

Evolução no sentido intelectual

Wesley, o filho mais novo, tivera febre reumática aos sete anos e Mrs. May pensava que esse fora o factor determinante para a sua evolução no sentido intelectual. Greenleaf, de Flannery O’Connor. Tradução de Clara Pinto Correia. Cavalo de Ferro, novembro de 2006.

- E agora?

Lembro-me daquele plano de um dos filmes mais misteriosos de Herzog. O carro a rodar em círculos, sem parar e sem ninguém ao volante. Como um estranho relógio a marcar as horas de um outro mundo. De um outro mundo ou deste mundo?

O chapéu

surge logo no segundo parágrafo e estende-se até ao nono. É verde e púrpura. Tem um aspecto desconchavado. Avança no conto como um som baixo e grave — que é o que costuma acontecer às peças de roupa quando desempenham papéis perturbantes na literatura. A mãe de Julian não vê nada de ridículo no chapéu. Pelo contrário, usar um chapéu assim — um pouco mais caro mas, por isso mesmo, distinto — e luvas é uma marcação social, diz aos outros que ela é alguém  (uma Chestny) e sabe quem é ( se tiveres consciência de quem és, podes ir seja onde for ). O chapéu é um estandarte da sua dignidade imaginária , sublinha Flannery O’Connor. O chapéu desdobra-se na missão. A frase que a empregada da loja usou para convencer a mãe de Julian a comprá-lo — com esse chapéu, não vai andar por aí igual às outras — aparece em duas conjugações quase seguidas. Apesar da tradução do Rogério Casanova me agradar mais do que a da Clara Pinto Correia, é preciso recorrer à expressão original — you won't meet

Ponto de situação

O que se sabe, com segurança, sobre o vírus? Sabe-se que pode ser fatal, que em alguns casos provoca sintomas graves, noutros apenas ligeiros e, noutros ainda, não provoca sintomas nenhuns. Pode acontecer tudo, incluindo nada. Exactamente como numa história de Daniil Harms.

Divertimento com chapéu verde e púrpura

Comecei com “Tudo o que sobe deve convergir”. Li o conto que dá nome ao livro, uma edição de 2006 da Cavalo de Ferro, traduzido por Clara Pinto Correia. Depois descobri a tradução, mais recente, de Rogério Casanova para a Relógio d’Água . No confronto das duas versões apercebi-me de uma frase muito discordante e fui procurar o original . A este ritmo, nem o lay off chega para me divertir a sério com a Flannery O’Connor. Ah, em “Tudo o que sobe deve convergir” o humor é o chapéu. (...) O chapéu era novo e custara sete dólares e meio. Ela não parava de dizer «Se calhar não devia ter gasto tanto dinheiro. Não, não devia. Vou devolvê‐lo amanhã. Nunca devia tê‐lo comprado.» Julian ergueu os olhos para o céu. «Não, claro que fez bem em comprá‐lo», disse. «Agora ponha‐o na cabeça e vamos embora.» Era um chapéu hediondo. A aba de veludo púrpura, dobrada para baixo de um dos lados, arrebitava do outro; o resto era verde e com o aspeto de uma almofada vazia. Decidiu que era menos cómic

Corredor

O minúsculo corredor de casa. Dois ou três passos são suficientes para o percorrer de um extremo ao outro. Até há pouco tempo um simples espaço de passagem, meio despido e cinzento. Agora, o coração da casa. A grande artéria urbana que liga a cozinha e a sala, com os seus néons, montras e bugigangas.

Bandeiras despregadas

Acabei de receber uma mensagem da ARS Norte a oferecer apoio psicológico por telefone, de segunda a sexta-feira, das 8:00 às 20:00. É um gesto simpático, mas em vez disso vou reler o que tiver cá em casa da Flannery O’Connor. Desta vez vou ter em atenção apenas o humor das situações. Desconfio que vou rir a bandeiras despregadas.

São todos perigosos

Tenho andado a pensar nisto: quando devolver os livros à biblioteca, os livros vão ser considerados suspeitos. Imagino que antes de voltarem às estantes sejam recolhidos com luvas, levados para uma câmara de desinfecção, higienizados. E isso vai acontecer a todos os livros das bibliotecas que estão — por agora e sabe-se lá até quando — retidos nas nossas casas possivelmente contaminadas. São todos perigosos. Os livros à nossa semelhança.

Câmara ligada

Longas e intermináveis reuniões de teletrabalho. Horas e horas com a «câmara ligada». O meu rosto no ecrã tem uma força magnética qualquer. Não consigo desviar o olhar de mim próprio. Todos os movimentos e gestos me atraem. Mexo no cabelo com a intenção de me ver. Sorrio e passo a mão pelo rosto como num filme. Os gestos mais simples e involuntários parecem controlados, estudados, ensaiados, falsos. Estou a representar o meu papel e sou um péssimo actor. Bresson jamais me contrataria.

Onde crescem os citrinos

Primeiro a biblioteca prolongou a entrega dos livros 15 dias, agora o prazo é indefinido: quando as coisas voltarem ao normal funcionamento . Mesmo assim, com tanto tempo disponível, tive de me obrigar a acabar as “Viagens” de Olga Tokarczuk. Fiz alguns sublinhados, mas não consegui desenvolver uma ideia íntegra da obra. De repente, a literatura parece uma tarefa desproporcionada. Características do Peregrino Certo amigo de longa data confessou-me que não gostava de viajar sozinho porque, quando via algo invulgar, novo ou belo, queria partilhar essa experiência com outra pessoa e sentia-se muito infeliz se não tinha ninguém com quem o fazer. Em minha opinião, uma pessoa assim não serve para peregrino. (Página 144) Acrescento apenas que, contrariamente ao mestre, van Horssen não tem jeito para o desenho. É um anatomista que contrata um desenhador profissional para cada uma das suas autópsias. O seu método de trabalho consiste em apontamentos rigorosos, tão pormenorizados que, qu

Vista de mar

Ontem, parou de chover. O céu adquiriu uma pureza extraordinária, de um azul ofuscante, varrido pela espuma de uma ou outra nuvem. Bandos de gaivotas pairam no ar, como pequenas ideias, distantes e vagas. É a nossa «vista de mar» sem praia.