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O chapéu

surge logo no segundo parágrafo e estende-se até ao nono. É verde e púrpura. Tem um aspecto desconchavado. Avança no conto como um som baixo e grave — que é o que costuma acontecer às peças de roupa quando desempenham papéis perturbantes na literatura.

A mãe de Julian não vê nada de ridículo no chapéu. Pelo contrário, usar um chapéu assim — um pouco mais caro mas, por isso mesmo, distinto — e luvas é uma marcação social, diz aos outros que ela é alguém (uma Chestny) e sabe quem é (se tiveres consciência de quem és, podes ir seja onde for). O chapéu é um estandarte da sua dignidade imaginária, sublinha Flannery O’Connor.

O chapéu desdobra-se na missão. A frase que a empregada da loja usou para convencer a mãe de Julian a comprá-lo — com esse chapéu, não vai andar por aí igual às outras — aparece em duas conjugações quase seguidas. Apesar da tradução do Rogério Casanova me agradar mais do que a da Clara Pinto Correia, é preciso recorrer à expressão original — you won't meet yourself coming and going — para captar toda a subtileza do humor de Flannery O’Connor.

O que a escritora faz depois é uma partida tremenda: afinal a mãe de Julian vai cruzar-se com uma cópia de si mesma no autocarro, uma cópia que ela e os seus preconceitos não poderão tolerar. Uma mulher corpulenta, negra, vestida de cores garridas, com um miúdo pela mão e um chapéu de abas púrpura e verde igual ao seu na cabeça. O padrão existencial do chapéu era um logro. Este encontro é uma desfeita à vida de ilusões morais da mãe de Julian, mas também — o conto é da Flannery O’Connor, não nos podemos esquecer disso — uma anedota e uma prova de simetria.

Acaba mal, como é habitual nestes exercícios espirituais de transe extremo. Porém, é quando perdemos tudo que podemos começar a falar de ganho. A imagem antiga das queimadas para limpar e preparar a terra é comum nestas parábolas. No fim, começa a história de culpa e dor de Julian, mas essa não foi escrita, fica por nossa conta. Pobre Julian, julgava que dominava a cena.

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