Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A febre

Éramos talvez umas seis ou sete pessoas no cinema. De máscara e espalhadas pela sala. Sessão dupla de Buñuel: «Simão do deserto» e «A febre sobe em El Pao». No final, imediatamente antes da sala se iluminar, lemos em fundo negro a última frase dos créditos de «A febre...»: «Les Films Corona.»

Influenciadores do século XX

Vai-me à loja e traz-me o troco

A Bertrand propõe-me oficinas, workshops e cursos online para aprender a pensar e escrever melhor. A “oficina pensar dentro da caixa” ensina, entre outras coisas, a escrever listas de compras criativas. Custa vinte e cinco euros. Não é só no Douro que um crocodilo é uma lontra.

Portas

Em «O casamento de Maria Braun» há várias sequências em que a personagem de Hanna Schygulla revisita o que resta dos locais onde tinha vivido antes dos bombardeamentos da Segunda Guerra. Numa dessas sequências, a câmara foca-se numa porta fechada e solitária, que escapou à derrocada parcial de um prédio. Lembro-me de ter visto portas e janelas parecidas em prédios e casas em ruínas, no Porto. Há uns anos, existia um edifício em Miguel Bombarda, que tinha caído durante um Inverno mais tempestuoso. Lá estava a porta fechada e suspensa no ar. O que haverá atrás dessas portas? Se abríssemos a porta do filme de Fassbinder víamos a Rua Miguel Bombarda? E se tivéssemos saído pela porta de Miguel Bombarda, teríamos entrado no filme de Fassbinder?

Para seduzir a ralé

O melodrama tem referido tantas vezes os salteadores do século XVI, tantas têm sido as pessoas que deles falam sem os conhecerem, que passámos a ter deles um conceito mais que falso. Pode, no geral, dizer-se que estes salteadores foram a oposição contra os atrozes governos que, na Itália, se sucederam às repúblicas da Idade Média. O novo tirano era de ordinário o cidadão mais rico da defunta república e, para seduzir a ralé, enfeitava a cidade com igrejas magníficas e formosas pinturas. Assim procederam em Ravena os Polentini, em Faenza os Manfredi, em Imola os Riario, em Verona os Cane, em Bolonha os Bentivoglio, em Milão os Visconti e, finalmente, os menos belicosos e os mais hipócritas de todos, os Médicis de Florença. Stendhal, Crónicas italianas . Tradução de Manuel João Gomes.
And here we are in the Bardo, in the pause between two realities,  in a time when nobody knows what's next.

Tais são as verdades que pretendemos relatar

Instruir o homem e corrigir-lhe os costumes, tal é o único objectivo que nos propomos nesta história. Ao lê-la, poderá o leitor imbuir-se no conhecimento dos perigos que se encarniçam atrás dos que, para satisfazer os seus desejos, a nada atendem! Possam eles ficar persuadidos de que a melhor educação, saúde, talento e dons da natureza apenas servem para desencaminhar até ao momento em que forem alicerçados e apresentados com contrição, boa conduta, sabedoria e modéstia. Tais são as verdades que pretendemos relatar. Possa o leitor mostrar-se indulgente pelos pormenores monstruosos do hediondo crime que seremos forçados a descrever; mas é possível fazer detestar aos outros semelhantes aberrações até que surja alguém com a coragem de revelá-los sem o mínimo disfarce? Marquês de Sade, primeiro parágrafo de Eugénie de Franval , incluído em Os crimes do amor. Tradução de João Costa.

Época balnear 2020

Mercado das ideias

A internet constitui um mercado das ideias, e os intelectuais tendem a atuar como fornecedores dos discursos-mercadoria demandados por cada nicho desse mercado: os liberais, os conservadores, os comunistas, os ecologistas. Não é o mesmo que ocorre numa loja de roupas ou na música popular? Essa sujeição do intelectual-produtor ao leitor-consumidor é tão mais extrema que muitos dos canais que ligam um ao outro são diretamente monetizados, quando não servem de ponte para a penetração no mercado editorial ou na mídia. Uma relação assim constituída envolve, portanto, a capacidade do intelectual não só como influenciador digital, mas como agente econômico. Nesse cenário de dependência material do intelectual em relação a um público, não surpreende que muitos abdiquem da soberania sobre seu pensamento em favor de discursos estereotipados, sempre os mesmos: o leitor-consumidor anônimo é um amo intratável. Não suporta muito bem a contrariedade. Sabemos de saída o que o articulista conservador o

Da arte de escrever um romance

Já não me recordo onde o comprei. Talvez na Vandoma. «Os crimes do amor», do Marquês de Sade. Edição do Círculo de Leitores, de 1975. Tradução de João Costa. O livro abre com o texto «Ideia sobre os romances», onde Sade se propõe, entre outras coisas, responder à pergunta «Quais as regras da arte de escrever um romance?» O livro está em relativo bom estado. Não tem dedicatória nem sublinhados, excepto justamente naquele texto inicial e apenas na parte específica sobre as «regras» para escrever um romance. O leitor ou leitora que me precedeu, dono anterior do livro, sublinhou a lápis, linha após linha, e sem levantar a mão, todos os conselhos de Sade. Nada lhe escapou. Nenhuma frase, nenhuma palavra, nenhuma vírgula. Não existindo mais sublinhados ao longo das restantes 250 páginas, imagino que tenha sido alguém interessado em escrever romances. Terá valido a pena? Terão sido úteis os conselhos do «divino marquês»? De uma maneira ou de outra, o livro, os conselhos e os sublinhados aca

— Branca Flor, já dormes?

Aguento horas e horas sem dizer uma palavra. Quando era miúda, a minha avó perguntava-me, na brincadeira, se estava viva ou morta. Eu ficava ainda mais quieta e calada; depois desatávamos as duas a rir. Às vezes, para espairecer, preciso de repetir esta cena — agora desempenho os dois papéis.

Fome

Sábado a atirar pedrinhas ao rio. Disseram-nos que por vezes aparecem lontras, mas não vimos nenhuma. Em compensação, descobrimos, aqui e ali, certas árvores cujas folhas foram atacadas por um estranho predador. Um criador involuntário de milhares de pequenas obras de pura e extravagante filigrana. Não tem a ver com imaginação, mas com fome.

Os velhos e as velhas chegam nos seus carrinhos de rodas.

A PRIMEIRA VELHA: Lembro-me como se fosse hoje... O PRIMEIRO VELHO: Não, eu é que me lembro como se fosse hoje. A SEGUNDA VELHA: Vocês, vocês lembram-se de como era como agora, mas eu de como era dantes. O SEGUNDO VELHO: E eu lembro-me como se fosse hoje de como era dantes. A TERCEIRA VELHA: E eu lembro-me como se fosse ainda muito mais dantes, mesmo ao princípio... O TERCEIRO VELHO: E eu lembro-me como se fosse hoje e como se fosse outrora... Vladimir Maiakovski, O Percevejo . Tradução de Alexandre O'Neill.

Não sei

Talvez certos leitores desejem conhecer a minha opinião acerca do carácter de Petchorin. A minha resposta é o título deste livro. «Mas é uma ironia maldosa!», dirão. Não sei. Mikhail Lermontov, Um herói do nosso tempo. Tradução de Jaime Brasil.

Oh, o amor intergeracional.

Falta de concentração

As personagens literárias parecem-se connosco, só que são construídas de um modo mais concentrado.  Enquanto nós somos aquela sopa de legumes que vem nas ementas dos restaurantes e os empregados apenas sabem que são feitas com legumes; as personagens literárias seguem um plano existencial definido (receita), têm características apuradas e distintas — são caldo verde, canja de galinha, sopa de beldroegas com queijo de cabra ou até, em caso de extrema necessidade,  vichyssoise .

Espaço

O confinamento e «Abril» , de Otar Iosseliani, provam várias coisas. A saber: bancos, cadeiras e cadeirões ocupam muito espaço. Os espelhos, as cristaleiras e os aparadores também. Mesas, secretárias e estantes exigem muito, muito espaço. Assim como os frigoríficos e os fogões. Os sofás são das coisas que ocupam mais espaço. Pequenos objectos, como pratos, copos, talheres, e pequenos electrodomésticos, como ventoinhas, aspiradores ou torradeiras, em conjunto, ocupam espaço a mais. O amor, a música e as árvores não ocupam espaço, mas definham em espaços demasiado preenchidos.