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Mensagens

Confinamento (dia dos mortos)

Marilyn Monroe apanhada a ler "Lágrimas e Santos" na cama.

Duvido de que alguma vez tivesse chegado a escrever uma linha

Ao olhar para Rimbaud vejo-me ao espelho. Nada do que diz me é estranho, por mais feroz, absurdo ou difícil de perceber que seja. Para compreender é preciso dispormo-nos a um acto de rendição, e recordo-me perfeitamente dessa rendição no primeiro dia em que olhei para a obra de Rimbaud. Nesse dia, há pouco mais de dez anos, li apenas algumas linhas e, tremendo como uma folha ao vento, pus o livro de lado. Tive nessa altura a sensação, e ainda a tenho, de que ele tinha dito tudo o que há para dizer no nosso tempo. Era como se ele tivesse colocado um telhado sobre o vazio. É o único escritor que li e reli com um prazer e uma excitação que nunca diminuíram, encontrando nele sempre qualquer coisa de novo, sempre tocado profundamente pela sua pureza. Seja o que for que diga dele há-de ser sempre aproximativo, sempre uma tentativa, no melhor dos casos um aperçu . É o único escritor cujo génio invejo; todos os outros, por maiores que sejam, nunca despertaram em mim inveja. E acabou aos dezan

A Veneza do bairro

As gôndolas avançam. Deslizam suave e silenciosamente, em todas as direcções. Há uma certa música no ar. Por trás das máscaras, os gondoleiros navegam nas águas paradas dos seus próprios sonhos. Percorrem os corredores do supermercado, entre a peixaria e o talho, em busca das promoções.

Energia e fluidos

Abro os Poemas de Álvaro de Campos (Pessoa), e deparo com "Seja o que for, era melhor não ter nascido".  Quoi qu’il en soit, mieux valait n’être pas né . Na tradução de uma carta de Pessoa, o tradutor emprega a expressão "crise psíquica". Devia ser: “crise moral", pois não se trata de um desânimo qualquer, mas de uma revisão da sua atitude para com os seus semelhantes. Em Pessoa, é quase a crise de Tolstói. Uma crise de ordem moral, portanto. Emil Cioran, Cadernos, janeiro de 1970 e janeiro de 1969

O mistério

Um manto de silêncio abateu-se sobre os supostos avanços na produção de uma vacina. Há semanas que não há notícias relevantes sobre o assunto. Mil laboratórios numa roda-viva. E, no entanto, o vírus continua sem revelar o seu segredo. O mistério recuperou o seu lugar no mundo. O mistério que nos perturba tão profundamente e que é tão humano como a crença no poder da ciência. É tudo tão velho e tão novo ao mesmo tempo.

Insónia absoluta

Acordo às três ou quatro horas, daí em diante o sono transforma-se em farrapos e voltas na cama. Podia procurar causas normativas, mas na verdade acho que é a influência de Cioran — a palavra estupor brilha como uma bola de espelhos.

Pergunta

Tudo começou com a pergunta de um estudante, diante de um aparente enigma eleitoral da cidade do Salvador. “Por que negros e mulheres são claramente a maioria nesta cidade, mas elegemos em geral homens, brancos e ricos, mesmo quando há candidaturas de negros, mulheres e pessoas com origem na periferia com que a maioria da população poderia se identificar?” Aqui.

Livro I, capítulo I, primeira palavra.

Esta manhã, vimos a exposição de R.H. Quaytman. Quase no fim, há um quadro onde a artista representa um livro - toda a exposição é organizada em torno das ideias de livro e de capítulos de um livro - com a inscrição «Book One: Fear». É perfeito. O capítulo inicial de qualquer livro deveria intitular-se «Medo». E a primeira palavra de qualquer primeiro capítulo também. É aí que tudo começa.

Regras de etiquetas

Ultrapassou os influenciadores, a pandemia e a quarentena; ultrapassou até o venerável Ludwig Wittgenstein. Cioran ( ah, cet enfoiré ! ) alastra neste blogue como um vírus.

“O mundo engendra-se no delírio, fora do qual tudo é quimera.”

É a primeira vez que traduzo um livro de uma ponta à outra (nunca cheguei a terminar os “Postes de Ângulo”). Assumi o título quase literalmente a atirei-me ao trabalho como uma missão. Demorei mais ou menos um mês a  traduzir as cento e tal páginas folgadas de “Lágrimas e Santos” (versão impressa no formato 11X17 cm). Uma ou duas horas por dia, de segunda a sexta, como se fosse um emprego em part-time. Agora vou passar mais de três meses a substituir as palavras, alterar a ordem. É um biscate, mas parece uma guerra — vamos a ver o que sobra.

Mudar o nome

O que peço à arte é que me ajude a dizer o que penso com a maior clareza possível, a inventar os signos plásticos e críticos que me permitam com a maior eficiência condenar a barbárie do Ocidente; é possível que alguém me demonstre que isso não é arte; não teria nenhum problema, não mudaria de caminho, me limitaria a mudar-lhe o nome: riscaria arte e chamaria de política, crítica corrosiva, qualquer coisa. León Ferrari.

O medo

Os outros têm medo de nós porque nós temos medo deles. Nós temos medo dos outros porque eles têm medo de nós. As máscaras não quebram o círculo vicioso. Pelo contrário, são a mais pura expressão gráfica deste estranho terror.

Divertimento

“Mas também o sofredor gosta às vezes de se divertir com o seu desespero, como se o fizesse também por desespero.” — Diz o stárets Zóssima a Ivan Fiódorovitch Karamázov. Podia ser um rascunho de Cioran nos seus Cadernos.

Sabe em que estou a pensar?

Há que saber como essa puta é. Sabe em que estou a pensar? Na Natureza. Quando se desvia assim, para um lado, devido a qualquer coisa que se não espera, não devemos protestar, não devemos opor resistência; pelo contrário: submetermo-nos, fazer boa cara... mas não abrandar por dentro, sobretudo não perder de vista o nosso objecto, de forma a ela saber bem que temos um, nosso . De começo, nas suas intervenções é sempre muito categórica, acutilante, etc., mas depois fica como que desfalecida no seu interesse súbito; abranda e então, às escondidas, podemos voltar aos nossos próprios trabalhos e até contar com certa indulgência da sua parte... Witold Gombrowicz,  Pornografia . Tradução de Aníbal Fernandes.

É a vida

1. Dans un village de Normandie, un enterrement. Je demande à un paysan des précisions. « Il était jeune, à peine soixante ans. On l’a trouvé mort dans les champs. Que voulez-vous ? C’est comme ça. » Et de répéter plusieurs fois : « C’est comme ça. » Qu’aurait-il pu dire d’autre ? Que peut-on dire d’autre sur la mort ? « C’est comme ça, c’est comme ça. » L’irréparable rend stupide. (Emil Cioran, Cadernos 1957-1972) 2. A tradução mais literal é esta, quase palavra por palavra — como deve ser: Numa aldeia da Normandia, um enterro. Peço pormenores a um camponês. “Era jovem, apenas sessenta anos. Foi encontrado morto no campo. Que quer? É assim.” E repete várias vezes: “É assim.” Que mais poderia dizer? Que mais podemos dizer sobre a morte? “É assim, é assim.” O irreparável faz-nos estúpidos. 3. Pois, está muito bem, mas apetece estragar um bocado; apetece traduzir “c’est comme ça” por “é a vida”. Argumentos não faltam: a expressão é muito vulgar, transmite melhor o sentido de inevitab

Invisível

Coloco a máscara. Saio de casa. Os óculos embaciam imediatamente. Tiro-os e guardo-os no saco. Imagino que se me cruzar com um amigo, de máscara e sem óculos, não me irá reconhecer. Imagino que avanço pela rua como se fosse invisível. Que não sou daqui nem de lado nenhum. Acho graça à ideia. Não, não acho graça à ideia.

Pessimismo

No entanto, se mais nada nos resta senão o pessimismo, isto não significa uma qualquer resignação fatalista, mas antes, como Walter Benjamin já o sabia, que este é o ponto de onde teremos necessariamente de partir: «il faut organiser le pessimisme». Daqui.