Abro os Poemas de Álvaro de Campos (Pessoa), e deparo com "Seja o que for, era melhor não ter nascido". Quoi qu’il en soit, mieux valait n’être pas né.
Na tradução de uma carta de Pessoa, o tradutor emprega a expressão "crise psíquica". Devia ser: “crise moral", pois não se trata de um desânimo qualquer, mas de uma revisão da sua atitude para com os seus semelhantes. Em Pessoa, é quase a crise de Tolstói. Uma crise de ordem moral, portanto.
Emil Cioran, Cadernos, janeiro de 1970 e janeiro de 1969
Na tradução de uma carta de Pessoa, o tradutor emprega a expressão "crise psíquica". Devia ser: “crise moral", pois não se trata de um desânimo qualquer, mas de uma revisão da sua atitude para com os seus semelhantes. Em Pessoa, é quase a crise de Tolstói. Uma crise de ordem moral, portanto.
Emil Cioran, Cadernos, janeiro de 1970 e janeiro de 1969
Comentários
Fernando Pessoa, por seu turno, não é movido por elevados preceitos morais nem metafísicos. "Não me falem de moral... tirem-me daqui a metafísica... Se têm a verdade, guardem-a!...", Álvaro de Campos quer apenas "estar sozinho!", para os heterônimos de Pessoa o outro não existe como 'possibilidade', mas sim como 'sonho', uma busca moral nasce do desejo de relacionar-se com um outro concreto (vide a situação de Filoctetes na cena I, segundo ato, do "Filoctetes ou O Tratado das Três Morais" de André Gide). Numa solidão louvada sem limites, Pessoa exime-se de construir uma atitude a qual requeresse noções de virtude/vício. Pessoa não questiona-se sobre o Bem viver, mas debruça-se sobre a única questão verdadeiramente importante: o Bem sonhar. Isto fica patente num dos fragmentos (truncado, aliás) de Bernardo Soares -- "não te masturbes..." não porque seja um vício condenável ou qualquer coisa do gênero: o verdadeiro sonhador prescinde de toda atitude física, conta apenas com a sensação: "A ejaculação, no caso do sensual [...] deverá ser sentida sem ter dado". (num conto do Rubem Fonseca, intitulado "A confraria dos Espadas", há uma interessante aplicação desta 'ética' de sonhadores)
Retorno a campos: "(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira/Talvez fosse feliz.)" -- o parênteses e o 'talvez' afastam a dimensão concreta que porventura tal pensamento poderia ter: a 'filha' é mais um pretexto para divagar, nunca para agir.
Cioran deve ter lido pouco de Pessoa, senão evitaria chegar numa comparação tão esdrúxula.