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Energia e fluidos

Abro os Poemas de Álvaro de Campos (Pessoa), e deparo com "Seja o que for, era melhor não ter nascido". Quoi qu’il en soit, mieux valait n’être pas né.

Na tradução de uma carta de Pessoa, o tradutor emprega a expressão "crise psíquica". Devia ser: “crise moral", pois não se trata de um desânimo qualquer, mas de uma revisão da sua atitude para com os seus semelhantes. Em Pessoa, é quase a crise de Tolstói. Uma crise de ordem moral, portanto.


Emil Cioran, Cadernos, janeiro de 1970 e janeiro de 1969

Comentários

Raul Padilha disse…
Que bela surpresa é este encontro! Mas nunca passou-me pela cabeça comparar Tolstói e Pessoa, nem vida nem obra -- pelos menos num primeiro momento -- coincidem. Aí, creio piamente, há um grande equívoco. Tolstói difere dos casos clássicos de psicológica justamente pelo aparente sucesso em tudo que fazia/era (escritor afamado, pai de família, conde e numa ótima condição financeira). A necessidade de Deus não consta na pirâmide do tão conhecido Maslow, e é aí que o nosso conde irá surtar. Sua atitude é moral na mesma medida em que sua fé é cega. A escalada de Tolstoi dá-se pelo medo da morte, chega na fé por desespero e não por convicção, por isto suas últimas obras são tresloucadas tentativas de conversão que não convencem (quase) ninguém. Daí a cruzada moral auto-imposta, a vida despojada dos últimos anos e o ápice épico da fuga aos 80 anos: Tolstói pretendia conciliar seus posicionamentos (tanto internos quanto externos sobre sua ética cristã pessoal) com a vida prática de "poderoso aristocrata" dono de terras e mujiques. No momento em que percebeu a impossibilidade de sustentar tal contradição começa então o seu verdadeiro "drama" moral.
Fernando Pessoa, por seu turno, não é movido por elevados preceitos morais nem metafísicos. "Não me falem de moral... tirem-me daqui a metafísica... Se têm a verdade, guardem-a!...", Álvaro de Campos quer apenas "estar sozinho!", para os heterônimos de Pessoa o outro não existe como 'possibilidade', mas sim como 'sonho', uma busca moral nasce do desejo de relacionar-se com um outro concreto (vide a situação de Filoctetes na cena I, segundo ato, do "Filoctetes ou O Tratado das Três Morais" de André Gide). Numa solidão louvada sem limites, Pessoa exime-se de construir uma atitude a qual requeresse noções de virtude/vício. Pessoa não questiona-se sobre o Bem viver, mas debruça-se sobre a única questão verdadeiramente importante: o Bem sonhar. Isto fica patente num dos fragmentos (truncado, aliás) de Bernardo Soares -- "não te masturbes..." não porque seja um vício condenável ou qualquer coisa do gênero: o verdadeiro sonhador prescinde de toda atitude física, conta apenas com a sensação: "A ejaculação, no caso do sensual [...] deverá ser sentida sem ter dado". (num conto do Rubem Fonseca, intitulado "A confraria dos Espadas", há uma interessante aplicação desta 'ética' de sonhadores)
Retorno a campos: "(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira/Talvez fosse feliz.)" -- o parênteses e o 'talvez' afastam a dimensão concreta que porventura tal pensamento poderia ter: a 'filha' é mais um pretexto para divagar, nunca para agir.
Cioran deve ter lido pouco de Pessoa, senão evitaria chegar numa comparação tão esdrúxula.