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Mensagens

Cinzas

Troco ideias com um velho amigo sobre as razões que explicam a ascensão da extrema-direita. Ainda que partilhemos a mesma área ideológica, temos opiniões diferentes. Opiniões sólidas, achamos nós, sustentadas em muitos anos de leituras, conversas de café e viagens nos transportes públicos. Elevamos a voz, quase nos zangamos. Desligo o telefone. Fumo um cigarro. As minhas certezas misturam-se com a água da chuva, no cinzeiro da varanda.

Fábrica de santos

Os santos criaram um espaço social particular, uma «junção» entre o mundo terreno e o divino. Em larga medida, este espaço social nasceu dos desejos e esforços dos seus devotos, embora mais tarde a Igreja tenha estabelecido um eficaz processo de produção de celebridade, ao qual George Minois designou como «fábrica de santos». Mosteiros, ordens religiosas, aldeias e cidades, todos competiram na criação dos «seus próprios», e as autoridades eclesiásticas tiveram de impor entraves ao processo de canonização para controlar a «inflação de santidade», gerando assim tensão entre os santos populares e os oficiais. Os últimos eram preferidos pelas autoridades eclesiásticas como modelos de virtude e submissão, exemplos de uma vida cristã imaculada. Contudo, o povo preferia personagens excêntricas e profundamente individualistas, com poderes espectaculares e miraculosos, ou figuras consideradas bons membros da comunidade e capazes de curar. Revolucionários e figuras como Robin dos Bosques - messi

Fruta da época

Estamos em Fevereiro e nas frutarias ainda há dióspiros. Frescos, doces, suculentos. Acabados de colher. Parece que os calendários continuam em vigor, mas por simples hábito. Nos velhos diospireiros, obedientes ao tempo ancestral da natureza, alguém enxertou o tempo acelerado dos negócios. A «fruta da época» foi substituída pela «época sem fim da fruta». Volto, uma vez mais, ao pesadelo do velho Isak Borg: relógios sem ponteiros.

Sono un attore

Quando diz à psicanalista que é actor, Michel Piccoli volta a ser Gilbert Valence e depois, dentro do autocarro, na verdade está dentro de um filme de Robert Bresson (ele sabe qual). Se juntar o nome relutante, a gaivota repetitiva, a partida de voleibol e outras coisas que me escaparam — mais do que um filme, Habemus Papam é um repertório. Gosto tanto do Michel Piccoli.

Esta casinha

Na Travessa de S. Brás, nas traseiras do cemitério da Lapa, há uma casa com um painel de azulejos à entrada, com a seguinte inscrição: Esta casinha que é nossa foi feita p’ra nós os dois. Amigos!... Também é vossa. Descansai; segui depois. Ninguém vive ali há anos. A casa está soterrada em musgo, ervas daninhas e humidade, quase em ruínas.
O homem que veio tapar o vulcão . Era assim que que se referiam a Orlando Ribeiro em Cabo Verde , em 1951, quando o vulcão do Fogo entrou em erupção. É uma expressão gentil de dois sentidos, diz-nos coisas sobre o geógrafo, mas também sobre a população das ilhas vulcânicas.

Um modesto

Noutro dia no autocarro encontrei um jovem escritor de vanguarda (!), que me critica por não ser revolucionário, por não querer inventar nada, em suma, por não trazer nada de novo. — "Mas eu não quero mudar nada de nada", disse-lhe. Não entendeu nada das minhas palavras. Tomou-me por um modesto. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.  Nota: Em 63 palavras, Cioran utiliza cinco vezes "rien" o que dá uma taxa de quase 9% (confirma-se: nada modesto nas orações negativas). Reduzi o texto em português para 51 palavras, mantive cinco vezes "nada" e aproximei-me dos 10%. Não sei em que teoria da tradução isto se pode enquadrar, mas gosto de ajudar Cioran a provar o seu ponto. 

Sublinhados meus

Os angustiados, os asfixiados, os exaustos, os abatidos, os sobrecarregados, os saturados, os queimados, os esgotados, os electrocutados. São eles e elas quem podem (podemos) perturbar a posição dominante do desejo hoje: o sempre-mais. Mas interromper o quê? Como esquivar-se ao imperativo do rendimento? Como escapar à figura do “maximizador”. É preciso um novo ataque à “economia libidinal” do neoliberalismo, à sua organização do desejo: um certo apagão das nossas energias desejantes. Esta “luta” não é necessariamente épica, heróica e colectiva. Não é necessário desvalorizar a deserção progressiva e os apagões pessoais. David Le Breton investigou, por exemplo, modos subtis de desacato ao imperativo do “seja você mesmo”, de estar permanentemente conectado e disponível, de estar sempre à altura. Fala do “silêncio” e do “caminhar”. Ele propõe que estes possam ser tomados como formas políticas de resistência. Como fugas activas do ruído da conexão permanente, como modos de voltar a tomar co

Corcundas

Leio numa revista que o famoso editor da Adelphi , Bobi Bazlen, tinha ganho uma corcunda, em resultado das longas horas passadas a ler com a cabeça apoiada numa pilha de almofadas. Esse defeito físico adquirido com a leitura «fazia com que a sua cabeça estivesse sempre ligeiramente avançada em relação ao corpo». Pergunto-me que espécie de corcundas ganharão os leitores dos nossos dias, esses leitores que passam mais de metade da vida a ler publicações nas redes sociais.

They banned the films

In the end, I always managed to do everything I wanted in the Soviet Union, even if my films were banned (...). By the same token, if you were banned, you were someone who was respected. (...) During that time, 120 filmmakers worked for the regime, as cinema was an instrument of propaganda. Nevertheless, one cannot say that the censors were too severe. They banned the films, but they respected the filmmakers. It gave them headaches... They allowed us to finish the film, before banning it. Otar Iosseliani.

Espíritos de segunda ordem

Arrastar-se lentamente como um caracol e deixar o seu rasto, com modéstia, aplicação e, no fundo, indiferença..., na volúpia tranquila e no anonimato.  O que me faltou foi vontade de fazer uma obra . Esta insuficiência é própria dos espíritos de segunda ordem. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Dimenticare, ballare.

Che bello sarebbe se riuscissi finalmente a girare quel film musicale, gli anni ’50, a sinistra tutti per Stalin però c’è un pasticcere, trotskista, isolato, calunniato che solo nel suo laboratorio, tra le sue paste e le sue torte, è felice. E dimentica. E balla. Nota: para juntar à lista de Henri Lefebvre.

Ladrar aos pombos

O cão preso na varanda passa o dia a ladrar aos pombos e às gaivotas. Talvez o cão não se resigne com a ideia de que aquelas criaturas nasceram com asas e que consigam voar acima das varandas, acima dos telhados, para lá do horizonte. A ciência explica, mas sou como o cão.

Especial vitalidade

(...) A filosofia, língua morta. “A língua dos poetas é sempre uma língua morta... um dito curioso: uma língua morta que se usa para dar uma vida maior ao pensamento”. Talvez não uma língua morta, mas um dialecto. Que a filosofia e a poesia falem numa língua que é menos do que língua é o que lhes dá a medida do seu alcance, da sua especial vitalidade. Pesar, julgar o mundo medindo-o através de um dialecto, de uma língua morta e, no entanto, fértil, onde não há a mudar uma virgula sequer. Continua a falar este dialecto, agora que a casa arde. (...) A poesia e a palavra são a única coisa que nos resta de quando não sabíamos ainda falar, um canto obscuro dentro da língua, um dialecto ou um idioma que não percebemos completamente, mas que não podemos deixar de ouvir – mesmo que a casa arda, mesmo que na sua língua que arde a humanidade continue a falar em vão.  Existirá uma língua da filosofia, como existe uma língua da poesia? Como a poesia, a filosofia habita integralmente na linguagem e

Obras-primas

Félix Pérez escreve sobre os filmes de Hong Sang-soo: Filme após filme, Hong Sang-soo oferece-nos um assombro após outro. É difícil chamar-lhes obras-primas, não porque não o sejam ou porque sejam menores do que outras consideradas como tal, mas porque essa terminologia, de certa maneira, adultera-as, ofende-as: não pretendem ser obras-primas, não gritam por atenção, não exigem que se reconheça a sua importância. Podíamos usar as mesmas palavras para descrever os livros de Robert Walser.

Magnólia

De vez em quando, por entre o incansável barulho da chuva a bater nos vidros, consigo distinguir o delicado farfalhar da magnólia molhada. Em baixo, melros nervosos divagam por cima das raízes. Parecem muito ocupados com um pensamento importante. Que pensamento? O que sabem os melros que nós não sabemos?

A Casa Amarela

Acontece-me muitas vezes, ao traduzir os textos de Cioran, encontrar palavras francesas que já não se usam. De certeza que as apanhou nos livros antigos (imensos e variados).  (Aparte) Aqui convém destacar que a principal actividade intelectual de Cioran é — não o podemos esquecer — ler. Escrever é importante, é verdade, mas vem a seguir, como a consequência num exercício de lógica. Para Cioran, ler é quase uma actividade orgânica como respirar, uma força vital como pensar.  (Continuando) Isto vem a propósito de uma das entradas do seu diário sobre lágrimas. No fim do parágrafo, Cioran escreveu: Sans quoi, je serais au cabanon.   É preciso recuar uns anos, uns séculos, para perceber o que Cioran quer dizer. Recuperar esse sentido de manicómio e depois escavar até chegarmos à Casa Amarela . Quando estabelecemos essa ligação dinâmica, o nível de serotonina sobe espontaneamente. É uma alegria.

Condições de vida

Ao lutar pelo pagamento dos salários a 100% para os trabalhadores que estão em lay off ou retoma progressiva de actividade, o Partido Comunista melhorou as minhas condições de vida. Posso ligar o aquecedor mais tempo, comprar um vinho melhor e até, de vez em quando, comer bife do lombo. Assim, e sem o saber, o PCP transformou-se no patrocinador oficial das minhas traduções de Cioran até junho.  Merci, camarades!