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Mensagens

Romper

Romper para sempre com tudo o que é académico, professoral, pedante, instrutivo, “objectivo”, “profundo”, “significativo”, “conhecido”, “conceituado", está na berra, etc., etc., etc.. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Páginas em branco

Um pouco por toda a cidade, multiplicam-se os suportes publicitários vazios. Altos tronos sem os seus tristes soberanos. Despidos da tralha publicitária, sem o brilho e a glória das novidades e promoções, lembram telas de cinema ou enormes páginas em branco. Agora, sim, vale a pena olhar para eles.

Casa em chamas

Leio nos jornais que passou um ano desde o aparecimento dos primeiros infectados pelo coronavírus em Portugal. Entretanto, nos últimos dias, comentadores e analistas, de todas as classes e géneros, têm exigido do Governo um «plano de desconfinamento», para que «não se repitam os erros do passado».  Ocorre-me o final de O Sacrifício , de Tarkovski: a famosa cena da casa em chamas. Há um documentário curioso sobre a rodagem do filme chamado Sätta Ljus , de Kerstin Eriksdotter. Nesse documentário, acompanhamos a preparação e as filmagens de várias cenas, e dessa última em particular. Tarkovski e a equipa, que incluía um corpo de bombeiros e outros especialistas em incêndios, planearam tudo até ao mais ínfimo pormenor, mas houve um problema com a câmara. As imagens do rosto de Tarkovski, dominado pelo desespero, são impressionantes. Para ele, o filme só era concebível com aquela cena. O investimento era avultado. Prepararam tudo pela segunda vez. A casa ergueu-se de novo, no mesmo local. R

Passou-se uma coisa muito curiosa que aproveito para contar aqui

Quando o [José] Craveirinha foi julgado em tribunal militar, tribunal de excepção, acusado de antiportuguesismo — porque ele era suspeito de querer a independência [de Moçambique] —, eu fui lá como testemunha abonatória. Era amigo do Craveirinha há muitos anos e, perante o juiz militar, que era um indivíduo convicta e seriamente aderente do Estado Novo (não era um oportunista, acreditava mesmo naquilo), eu disse esta coisa muito simples: “Oiça, não convém confundir o desejo de uma alteração político-administrativa num território com antiportuguesismo, porque, se vocês repararem, há pouca gente que goste tanto da língua portuguesa quase sensualmente como o Craveirinha. Um indivíduo destes não pode ser antiportuguês. Pode ser contra o regime que nos governa, mas isso não tem nada que ver com Portugal.” O juiz militar ouviu com muita atenção o que eu lhe disse — antes de dar a sentença, uma pessoa minha amiga viu-o na igreja com ar de grande angústia — e depois foi um dos que votou pela a

Este mundo

Devia haver um livro de Edward T. Hall sobre insultos e imprecações, do género dos que ele dedicou ao tempo e ao espaço. Na falta de fontes eruditas, restam as palavras vulgares (que até assentam melhor aos textos de Cioran, não me posso esquecer disso nunca).  “ Ce monde qui ne vaut pas un crachat ” traduz-se quase automaticamente por “este mundo que não vale um peido”. (Pensei na rã, claro, mas eliminei-a logo — não me permito golpes desses.) Acho que Cioran era capaz de gostar desta troca escatológica; peido é mais angelical que escarro .

Decifrar

Atribuir a cada edifício da cidade uma letra do alfabeto: «a» para casas térreas; «b» para casas térreas com logradouro; «c» para casas térreas com telhado de uma água; «d» para casas térreas com telhado de duas águas; «e» para prédios de dois andares; e assim sucessivamente. Decifrar os textos secretos do grande arquitecto.

Fotografia

Saio de manhã cedo para um curto passeio antes do trabalho. Percorro a Rua de António Cândido, em direcção a Faria Guimarães. Mais ou menos a meio, ergue-se a maior magnólia do bairro. Faz parte de um jardim privado, mas a árvore já saltou o muro e parece querer lançar-se pela rua a qualquer momento. Tiro uma fotografia antes que escape.

Paisagens despojadas da Escócia

Armand Robin, este estranho tradutor que conhecia toda a poesia, um dia em que lhe falei de Chuang-Tzu, disse-me que o punha acima de todos os poetas e de todos os pensadores, e que só o podia comparar com algumas paisagens despojadas da Escócia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Ah, o Japão!

Este japonês que diz que é preciso compreender o « ah !» das coisas. Cocktail em casa de uma jovem japonesa. Temos de aprender o sorriso nipónico . O resto é acessório.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Fizera versos

Quando amanuense, fizera versos; nomeado oficial, perdeu o costume, mas um dos efeitos da paixão foi restituir-lho. Consigo, em casa da mãe, gastava papel e tinta a metrificar as esperanças. Os versos escorriam da pena, a rima com eles, e as estrofes vinham seguindo direitas e alinhadas, como companhias de batalhão; o título seria o coronel, a epígrafe a música, uma vez que regulava a marcha dos pensamentos. Bastaria essa força à conquista? Gouveia imprimiu alguns em jornais, com esta dedicatória: A alguém. Nem assim a praça se rendia. Machado de Assis, Esaú e Jacó.

Teoria Geral das Lágrimas

Em termos de definição, basta o verbete do dicionário: gotas líquidas que saem dos olhos, por efeito físico ou por causa moral .  Mas como conceito, as lágrimas de Cioran são a coisa humana mais parecida com a música. Só percebi isso agora. Ele queria escrever uma peça musical — uma fuga , talvez.

Contra

Em 1965, Cioran escreve nos seus Cadernos : “Ai terminé un article contre le christianisme. Comme toujours je finis par épouser la cause que j’ai violemment attaquée, et je passe dans le camp adverse”. (Terminei um artigo contra o cristianismo. Como sempre, acabo por aderir à causa que violentamente ataquei e passo para o campo adversário.) A falta do pronome pessoal pode ser distracção ou gralha, mas não acredito nisso. Para além do cristianismo, Cioran também está contra o francês:  Em luta com a língua francesa: uma agonia no verdadeiro sentido da palavra, uma luta onde fico sempre por baixo.  Contra a gramática: Um profeta fulminado pela gramática.  E, acima de tudo, contra o “eu”: O eu é uma ferida aberta.

Não vale a pena dizer o nome

Mandou fazer um armário envidraçado, onde meteu as relíquias da vida, retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma luva, uma fita e outras memórias femininas, medalhas e medalhões, camafeus, pedaços de ruínas gregas e romanas, uma infinidade de coisas que não nomeio, para não encher papel. As cartas não estavam lá, viviam dentro de uma mala, catalogadas por letras, por cidades, por línguas, por sexos. Quinze ou vinte davam para outros tantos capítulos e seriam lidas com interesse e curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete encardido e sem data, moço como os bilhetes velhos, assinado por iniciais, um M e um P, que ele traduzia com saudades. Não vale a pena dizer o nome. Machado de Assis, Esaú e Jacó.

Le mauvais démiurge — variações

(…) Decidi começar pelo início, que é um princípio tão bom como outro qualquer, e elegi como vítima da primeira tradução da minha vida Précis de décomposition , o livro com que Cioran iniciou a sua carreira de escritor em França. Os títulos de Cioran sempre me deram dores de cabeça e nesse caso resolvi traduzi-lo como Breviario de podredumbre  (Breviário de Podridão): assim evitava o som excessivamente intestinal de descomposición  em castelhano e, em troca, aproveitava a blasfémia insolentemente eclesiástica de breviario ...  Depois, encorajado pelo surpreendente eco público dessa primeira tradução (que culminou quando um empregado do bar da faculdade de filosofia me perguntou se pensava traduzir outro livro de Cioran, anedota que encantou o autor), dediquei-me ao que tinha sido o meu primeiro contacto com a sua obra: Le mauvais demiurgue . Mauvais ? Após dar muitas voltas, optei por convertê-lo em aciago  (aziago). Cioran, que lê e compreende muito bem espanhol, não ficou lá muit