Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A big-time loser

O texto de Olizia Nuzzi anuncia : triste, só, falido. E cita três vezes o Sunset Boulevard . Mas a imagem da capa da revista New York  (Damon Winter/The New York Times/ Redux) segue outro rumo cinéfilo e mostra Trump como uma personagem de Kaurimäki, apenas com adereços mais sofisticados.  

Um pastor a tentar lembrar-se onde estacionou o burro

Um escândalo em Londres. Leio no jornal que Jonathan Jones, crítico de arte do The Guardian , acusou a equipa da National Gallery, responsável pelo restauro do quadro Natividade , de Piero della Francesca , de lhe ter estragado o Natal. Na opinião do crítico, o restauro foi realizado sem «alma artística». Os pastores, por exemplo, ficaram com um ar «perturbadoramente imbecil»: o da direita «de rosto cor de laranja parece tonto, até mesmo com prisão de ventre, com os seus olhos quase humanos desfocados e sem vida. É como se estivesse a tentar lembrar-se onde estacionou o burro». Na imagem: o pastor da direita, a tentar lembrar-se onde estacionou o burro.

O pátio do bisavô

Uma das cenas que melhor descreve os mecanismos sinuosos da memória surge quase no início do livro. Em 2011, um conhecido de Maria Stepánova convidou-a para participar numa conferência em Sarátov. Ela não conhecia a cidade mas, como era a terra do seu bisavô, resolveu aceitar o convite e aproveitar para investigar.  O conhecido conseguiu descobrir onde o seu bisavô vivera cem anos antes e ela foi à rua Moskóvskaia à procura do passado. Apesar de nunca lá ter estado, vai reconhecendo o pátio, as vedações, um arbusto, as paredes tortas, a madeira, os tijolos — tudo aquilo era nosso , escreve.  Uma semana depois o tal conhecido telefona-lhe para dizer que se enganara no endereço, o bisavô tinha de facto vivido naquela rua mas noutro número. Maria Stepánova conclui: Isto é mais ou menos tudo o que sei da memória .

Tudo rima

Memória da Memória , de Maria Stepánova, começa com uma citação de Lewis Carroll: « Que interesse tem um livro — pensou Alice —, se não tem figuras nem conversas? » E logo na página 15 uma nota de rodapé explica que sentar-se antes de partir de viagem é um costume antigo na Rússia . Mais do que o título, foram estas frases que atiçaram a minha curiosidade — é disso que se trata. O livro é um livro , claro, mas é também um sítio de confluência que recolhe coisas passadas sem ligações evidentes (definição básica de memória). Uma série de relatórios preliminares, pode-se dizer assim, sobre a família de Maria Stepánova, os judeus, os russos e todos nós — mas que não haja engano, o que é considerado principal já está em acção: dentro e fora das palavras, das imagens, dos objectos. Como nos obriga a fazer muitas pesquisas de reconhecimento (fotografias de Francesca Woodman, pequenos bonecos de porcelana fabricados na Alemanha desde o século XIX e mais tarde conhecidos por frozen Charlotte

Akyn​​, Darezhan Omirbayev

A câmara fixa uma fotografia pendurada na parede. A fotografia mostra um homem a segurar desesperadamente uma árvore que está prestes a cair. Podia ser Bergman, Tarkovski, mas é outra coisa. A câmara desvia-se da fotografia, baixa e revela a mão de um homem a segurar uma esferográfica. O homem está sentado em frente a uma mesa de cozinha, a escrever um poema num caderno de linhas. É aqui que o filme começa.

Belisário Praxedes

Estava à procura de edições portuguesas de Gamiani ou Deux nuits d'excès , o romance erótico atribuído a Alfred de Musset. O sítio da Biblioteca Nacional levou-me à edição da Arcádia, de 1975: Gamiani ou Duas noites de prazer . O tradutor chama-se Belisário Praxedes. Um pseudónimo, certamente. Pesquiso outros livros traduzidos por Praxedes. Surgem mais três referências, todas elas de clássicos eróticos: Os onze mil vergalhos , de Apollinaire; e Fanny Hill e A vida secreta de um estudante , ambos de John Cleland. Consulto o dicionário. Belisário significa «aquele que perdeu a riqueza» e é um adjectivo que serve para designar uma pessoa «pobre», «que tem má sorte». Praxedes vem do grego praxiádes , cujo significado está relacionado com os verbos «praticar», «agir», «fazer» e «experimentar». Um tradutor cuja pobreza não o impede de fazer e praticar. Uma existência muito baudelairiana.

Como se morre

Os relatos de Como se Morre , de Émile Zola são impressionantes pela forma como a proximidade e consumação da morte são descritos sem sentimentalismos nem uma palavra a mais. Pode-se, talvez, falar de uma escrita tendencialmente crua, limpa, realista, qualquer coisa desse género. É um trabalho exemplar que sabe ainda melhor dada a alarvice que por aí circula. Apesar de ter aderido logo ao espírito da obra, aos poucos comecei a perceber que Zola incorria noutro erro, mas já lá vamos, agora passo a palavra a V.S.T. que explica bem o caso na sua nota introdutória Zola porque sim : «Aqui temos, rapaziada, e em curtas páginas, Zola no seu melhor-do-costume — cinco-narrativas-cinco onde, com precisão de antropólogo social e numa prosa particularmente eficaz no desenho de personagens, situações e ambientes (em meia dúzia de parágrafos, eis descrito o universo das diferentes classes — da aristocracia altaneira ao proletariado miserável e ao campesinato, passando pelas burguesias gorda

Ensaio de natal

Muñoz Machado ha querido destacar las modificaciones introducidas por iniciativa del escritor y académico Javier Marías, fallecido el 11 de septiembre: hagioscopio, que es la abertura o pequeña ventana hecha en la pared de una iglesia, desde donde se puede ver el altar; otra es una adición al término traslaticio como relativo a la traducción, y una nueva acepción, sobrevenido, como adjetivo que significa impostado, artificial. As três palavras juntas podem ser o início de uma história. Ou de um ensaio. 

O Executor

Divirto-me muito a conversar com o chatGPT. Acho que o vou convidar para a consoada.

Um piano com pulgas morde a própria cauda

Vivace — Lento Maestoso — Allegro — Quasi Doppio Movimento — Poco Adagio — Vivace non Troppo — Vivace — Vivace — Vivace — Vivace — Andante — Vivace non Troppo — Allegretto — Andante Moderato — Vivace — Vivace — Allegretto Scherzando — Quasi Tempo di Marcia — Allegro — Vivace — Vivace — Vivace — Lento Maestoso.

Gralha

No sábado, na apresentação de um livro muito querido, descobrimos uma gralha. A frase que está impressa na página 14, e que escapou a três ou quatro revisões, diz o seguinte: «Um templo, cujos muros estão cobertos de emblemas, imagens e mandamentos da divindade.» E a versão correcta é: «Um tempo, cujos muros estão cobertos de emblemas, imagens e mandamentos da divindade.» Um templo e um tempo . Será realmente uma gralha?

Gandula

Traduzir deixa-nos uma série de manias. Agora, quando estou a ler uma tradução, qualquer uma, tendo a substituir, alterar a ordem e até a riscar algumas palavras que me parecem a mais.  Como acontece com os vícios, isto já alastrou para os livros escritos em português. Transformei-me numa apanha-bolas (tem qualquer coisa a ver com Godard, mas já não me lembro o quê). No Brasil diz-se gandula .

O que não se consegue perceber a cem por cento

Um dos meus parágrafos preferidos de Walden , talvez o preferido, é este, na secção “Economia”:   “Há muito tempo perdi um cão de caça, um cavalo baio e uma rola; procuro-os até hoje. Falei com muitos viajantes sobre eles, descrevendo os seus percursos habituais e os chamamentos a que respondiam. Um ou dois tinham ouvido o cão, o galope do cavalo e até visto a rola desaparecer atrás de uma nuvem, parecendo tão ansiosos por encontrá-los como se eles próprios os tivessem perdido.” ( minha tradução, para a Relógio D’Água ).   Gosto particularmente desta passagem pelo facto de resistir às explicações dos comentadores,  que a consideram o momento mais enigmático do livro. Todos os livros deviam ter passagens que os leitores, os comentadores e os tradutores não conseguem perceber a cem por cento — e que os autores não querem decifrar. Os estudiosos tentam identificar as possíveis referências do cão de caça, do cavalo baio e da rola que Thoreau menciona, especulando que devem ser pessoas, mas

Observações avulsas sobre o bonfim #51

Nas freguesias mais orientais há cada vez mais imigrantes. Cruzo-me com eles no metro e autocarros, supermercados e ruas. Não têm muito dinheiro — nota-se —; são novos e bonitos. É o Porto cosmopolita que não vem nas revistas e o resto da cidade desconhece. Talvez tragam com eles a mudança necessária.