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Como se morre

Os relatos de Como se Morre, de Émile Zola são impressionantes pela forma como a proximidade e consumação da morte são descritos sem sentimentalismos nem uma palavra a mais. Pode-se, talvez, falar de uma escrita tendencialmente crua, limpa, realista, qualquer coisa desse género. É um trabalho exemplar que sabe ainda melhor dada a alarvice que por aí circula.

Apesar de ter aderido logo ao espírito da obra, aos poucos comecei a perceber que Zola incorria noutro erro, mas já lá vamos, agora passo a palavra a V.S.T. que explica bem o caso na sua nota introdutória Zola porque sim:

«Aqui temos, rapaziada, e em curtas páginas, Zola no seu melhor-do-costume — cinco-narrativas-cinco onde, com precisão de antropólogo social e numa prosa particularmente eficaz no desenho de personagens, situações e ambientes (em meia dúzia de parágrafos, eis descrito o universo das diferentes classes — da aristocracia altaneira ao proletariado miserável e ao campesinato, passando pelas burguesias gorda e magra), o nosso escriba fornece elementos suficientes para que possamos contrariar aquele tese, deliquescente, mas basto badalada, da morte (com seus rituais fúnebres, consoante a tabela de preços) como entidade igualitária. Não, mesmo na morte não somos não senhor iguais, gatos e ratos. ... O que não é fatalmente negativo, conceda-se. Ao envolver, absorver, o velho camponês no húmus que o criou e a que regressa, Zola como que exalta a situação (Rousseau em vista?) em alto-contraste com a sem-saída das mortes urbanas, estas no cemitério mais perto de si.»

E assim é, o livro abre com a narrativa da morte do conde de Verteuil — a quem não vale de nada nem pergaminhos nem fortuna; morre não só sozinho como todos nós, mas abandonado pela família — e vai por aí abaixo na estratificação social até à descrição telúrica do lavrador Jean-Louis Lacour acolhido pela terra: o pó ao pó.

Ora bem, apesar de perceber as boas intenções de Zola e até tomar o seu partido a maior parte das vezes, sei que a morte não é uma questão moral: nem o pobre morre em comunhão com a terra por ser pobre, nem o rico em agonia por ser rico. Apenas quem não tem nada, está mais bem preparado para um acto que exige despojamento total. Em termos literários as relações de classes e princípios morais resultam e até podem constituir matéria de reflexão, mas quando se tornam automaticamente políticas, isto é quando querem intervir e mudar a sociedade com base nos seus pressupostos, não têm qualquer sustentação. A análise moral da riqueza e da pobreza tem feito a desgraça da esquerda. Para isso — quer dizer, para nada — já tínhamos a religião.

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