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Tudo rima

Memória da Memória, de Maria Stepánova, começa com uma citação de Lewis Carroll: «Que interesse tem um livro — pensou Alice —, se não tem figuras nem conversas?»

E logo na página 15 uma nota de rodapé explica que sentar-se antes de partir de viagem é um costume antigo na Rússia. Mais do que o título, foram estas frases que atiçaram a minha curiosidade — é disso que se trata.

O livro é um livro, claro, mas é também um sítio de confluência que recolhe coisas passadas sem ligações evidentes (definição básica de memória). Uma série de relatórios preliminares, pode-se dizer assim, sobre a família de Maria Stepánova, os judeus, os russos e todos nós — mas que não haja engano, o que é considerado principal já está em acção: dentro e fora das palavras, das imagens, dos objectos.

Como nos obriga a fazer muitas pesquisas de reconhecimento (fotografias de Francesca Woodman, pequenos bonecos de porcelana fabricados na Alemanha desde o século XIX e mais tarde conhecidos por frozen Charlottes, o filme Diversions, guaches de Charlotte Salomon, etc.), estamos sempre a sair e entrar na escrita: cada capítulo é um espaço provisório ou de ligação, talvez um gabinete de curiosidades, obscuro e cheio de bricabraque, semelhante ao apartamento da tia Gália, apenas mais dialéctico e com passagens. A dimensão espacial e material de Memória da Memória é tão elevada que há frases que refletem a sua própria estrutura narrativa como se fossem pedaços de espelho — basta estar atento.

Uma obra documental extremamente engenhosa que, mais do que lida, merece ser estudada. (Nota: é preciso coragem para ultrapassar alguns grumos da tradução portuguesa. Pelo que consegui ler, a versão inglesa de Sasha Dugdale, feita com a cumplicidade da autora, é muito mais ritmada e elegante.)

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