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Mensagens

As sensações estão a voltar

Tens razão, Cristina . Depois de ver  Jeanne Dielman , não é possível ler, ir ao cinema ou olhar para o tecto, sem nos ocorrer uma cena, um gesto, um som do filme. Há mais uma passagem de Beckett, desta vez em Eu não , que me empurra para a obra de Chantal Akerman. Continuo a achar que o desvio na rotina de Jeanne e o início da derrocada começa fora de campo, no quarto com o cliente, a meio do segundo dia. Talvez ela tenha reconhecido em si qualquer coisa que ultrapassava a simples relação prática com o homem. A passagem de Beckett (tradução de Isabel Lopes): (...) reconhecê-la como sua… a voz como sua… mas também lhe vem ainda… ainda uma ideia… assustadora… oh muito depois… breve luz que se fez… ainda mais assustadora se possível… de que as sensações estão a voltar… imaginem!... as sensações estão a voltar!... a partir de cima… depois a apoderar-se para baixo… da máquina toda… mas não… ao menos isso… só a boca… a face… até ver… ah!... até ver… depois dizendo para si própria… oh muito

Apneia

Duas cenas dos dois primeiros filmes de Lucrecia Martel. Primeira. O miúdo mais pequeno de O Pântano a suster voluntariamente a respiração, como um mergulho em apneia à superfície. Segunda. O jogo de Amália com as amigas na piscina do hotel, em A Rapariga Santa , para ver qual delas consegue permanecer mais tempo debaixo de água sem respirar. Em ambas as cenas — que são o espelho uma da outra —, há mais do que um simples divertimento. Há um truque para aprender a viver: os miúdos separam a sua respiração da respiração do mundo, saem temporariamente de cena, tornam-se invisíveis por alguns segundos.

Postal

Quando saí da biblioteca, sentei-me a apanhar sol e a ler as contracapas. A avenida das tílias parecia um corredor de um aeroporto: franceses, italianos, chineses, alemães, muitos espanhóis. Eu própria desempenhava um papel turístico:  mulher local a ler ao sol .

Cegos

Manhã cedo. Bebo um café junto à janela da cozinha. Lá fora, os vizinhos passeiam os animais de estimação. Se por um fenómeno esquisito, os animais de repente se evaporassem, os vizinhos pareceriam cegos a caminharem para a frente e para trás, segurando bengalas em forma de trelas.

Que batalha sempre perdida isto é

Quanto ao ânimo mais íntimo, Beckett ainda se sentia extremamente abatido. Viu-se sobrecarregado com tarefas menores e com a verificação de traduções do seu trabalho, o que o deprimiu ainda mais. "Tão cansado e farto da tradução", escreveu a MacGreevy, "e que batalha sempre perdida isto é. Queria ter a coragem de lavar as mãos de tudo isto, quero dizer, deixar isto para os outros e tentar continuar algum trabalho." É que o fardo cansativo de rever as traduções do seu trabalho que outros tinham feito impedia-o de avançar com as duas traduções mais importantes com que se tinha comprometido: Endgame e The Unnamable ( Fim de Partida e O Inominável ). (...) Beckett mostrava-se frustrado e impaciente com os seus esforços iniciais, sentindo constantemente perdas em relação ao original: "Está horrível em inglês, toda a clareza perdida, e os ritmos. Se eu não estivesse vinculado a um contrato com o Royal Court Theatre, não autorizava a peça em inglês." James Kn
Vi umas fotografias de Aki Kaurismäki na inauguração do ciclo da Cinemateca, mas fiquei desapontada — contava vê-lo com o cão.

Os pássaros

Leio no Jornal de Notícias que os estudantes da Faculdade de Letras do Porto andam assustados. Têm sido atacados por violentos bandos de gaivotas, que lhes roubam a comida e a paz de espírito. O jornal inclui os comentários impressionantes de alguns alunos: Quando nos sentamos no pátio, elas colocam-se em posição, a observar e à espera. Mas o problema é que, quando atacam, é sempre todas juntas. Luís Aguiar, 20 anos. Eu já vi a roubarem algumas vezes. E como são agressivas, as pessoas têm medo. Jéssica Magalhães, 21 anos. Não podemos comer em paz. Acredito que a faculdade saiba. Mas deviam fazer alguma coisa. Rafael Tavares, 19 anos. O problema não é só no pátio. Já chegamos a estar dentro do bar, e a ter gaivotas ao nosso lado. Para além de incomodar, não é nada higiénico. Lucas Frias, 20 anos.

Situação factual

Ao preparar o almoço, apercebo-me que duas das actividades mais importantes para cozinhar bem — cortar (fino, fino) e mexer (mais e mais) — são também importantes na escrita. Claro que temos de dar um empurrãozinho semântico a mexer para o aproximar de montagem . Mesmo sabendo isso, nunca conseguirei alguma vez escrever um texto melhor do que o empadão de carne que acabei de comer.

Incendiar o mundo

A ambiguidade é um grande trunfo de Jeanne Dielman . Podemos levar o filme para onde quisermos, ele segue-nos, obedientemente ou com relutância, mas depois volta à sua forma original — intacto, pronto para outro devaneio. Podemos andar nisto muito tempo.  Hoje de manhã, à revelia de Chantal, durante a viagem de metro ocorreu-me que os dois últimos planos podem ser uma imagem do que se passa na cabeça de Jeanne. Nesta versão, o crime e a pausa depois do crime não são executados, são apenas idealizados ou talvez seja melhor dizer: potencializados . Claro que isso mostra-nos uma personagem ainda mais perturbada porque acumula ideias revolucionárias num sítio obscuro da sua cabeça — uma mulher que não mata aquele homem mas é capaz de incendiar o mundo inteiro amanhã.

Lembro-me

Lembro-me , de Joe Brainard, é um livro genial. Se tivesse de o definir através de uma imagem, recorreria ao papel que a Regina Guimarães filmou no atelier de Ângelo de Sousa, pouco depois da morte do artista, em 2011. Estava fixado num painel, entre outros papéis, como um lembrete, e dizia: «Fazer as rectas ligeiramente curvas.»   

O casaco sem botão

Apesar de ser um filme terrível, Jeanne Dielman tem duas situações cómicas.  Numa das vezes em que vai deixar ou buscar a bebé, a vizinha conta que não sabe o que há-de fazer para o jantar (Jeanne não tem esse problema porque segue um menú semanal rígido). Estava no talho sem saber o que comprar, desorientada repetiu o pedido da cliente anterior e acabou por trazer um quilo de vitela, mas em casa ninguém gosta de vitela — por ela comia só uma sandes e pronto. A vizinha fica sempre atrás da porta, nunca a vermos, só ouvimos a voz e é a voz de Chantal.  A outra é quando Jeanne dobra e embrulha um casaco com muito cuidado numa folha de papel (é o que tem nas mãos na fotografia) e percorre várias lojas à procura de um botão, mas não o consegue encontrar. Uma das empregadas diz mesmo que nunca viu um botão igual. A determinada altura ela explica que é um casaco como novo do sobrinho que vive no Canadá que só agora serve ao filho, mas como ela sempre ouviu dizer que a Europa está muito atra

Domingo

Ontem à noite, voltamos a ver Fugiu um Condenado à Morte . A cena de Fontaine pendurado na corda, a atravessar os muros da prisão de Montluc, lembra as sequências dos trapezistas de Varieté , o filme que tínhamos visto de manhã, no Batalha. O dia fez um arco.

Movimento de um corpo que cai

A partir do segundo dia, Jeanne Dielman começa a desempenhar as suas tarefas de um modo mais distraído: esquece-se de as executar ou não as executa pela ordem adequada, nem no tempo certo, nem com a intensidade aconselhada. Lentamente começa a fazer tudo um pouco mais rápido. Podemos não saber o que aconteceu, mas apercebemo-nos que essa aceleração significa que estamos perante um corpo em queda livre.

Durante a noite

Ontem, depois das dez, a polícia fechou a entrada do bairro com dois carros-patrulha. Um camião gigante veio e ocupou a rua. Homens com coletes reflectores elevaram-se no ar, bruxuleantes como pirilampos. Uma grua com mais de vinte metros desapareceu durante a noite. Esta manhã, o céu está cheio de nuvens e gaivotas. Nada mais.