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As sensações estão a voltar

Tens razão, Cristina. Depois de ver Jeanne Dielman, não é possível ler, ir ao cinema ou olhar para o tecto, sem nos ocorrer uma cena, um gesto, um som do filme.
Há mais uma passagem de Beckett, desta vez em Eu não, que me empurra para a obra de Chantal Akerman. Continuo a achar que o desvio na rotina de Jeanne e o início da derrocada começa fora de campo, no quarto com o cliente, a meio do segundo dia. Talvez ela tenha reconhecido em si qualquer coisa que ultrapassava a simples relação prática com o homem.

A passagem de Beckett (tradução de Isabel Lopes):
(...) reconhecê-la como sua… a voz como sua… mas também lhe vem ainda… ainda uma ideia… assustadora… oh muito depois… breve luz que se fez… ainda mais assustadora se possível… de que as sensações estão a voltar… imaginem!... as sensações estão a voltar!... a partir de cima… depois a apoderar-se para baixo… da máquina toda… mas não… ao menos isso… só a boca… a face… até ver… ah!... até ver… depois dizendo para si própria… oh muito depois… breve luz que se fez… isto não pode continuar… todo este… todo este… jorro contínuo… a luta por entender… tirar dali alguma coisa… e os seus próprios sentimentos… (...)

Ora, «as sensações voltarem» era coisa que Jeanne não podia admitir.

Comentários

c disse…
Do meu trabalho de investigação:

Do you know what happens to Jeanne with her second client on the second day?
With her second client she had an orgasm, that was what destroyed her order, there was no room for that in her life.


https://www.slantmagazine.com/film/q-a-with-chantal-akerman-jeanne-dielman-three-decades-later/

Noutra entrevista que li (já não sei onde), Chantal vai mais longe e diz que Jeanne Dielman tem um orgasmo nesse segundo dia que altera a ordem vigente, mas pensa que é uma coisa fortuita que não se repetirá. Por isso insiste na rotina, espera que tudo volte ao normal. O pior é que no terceiro dia o desatino repete-se e ela tem de agir.

Se relacionarmos estas acções (diárias) com os diálogos (nocturnos) que ela tem com o filho antes de se deitarem, dá pano para mangas :D

Ah, tinha receio de estar a ver coisas que não estavam lá. Mas eu tinha quase a certeza de que ela tinha sentido prazer físico no encontro com o terceiro cliente. E que o mesmo devia ter acontecido no segundo encontro. Ela vem do quarto despenteada. E olha para o cliente de uma forma diferente da forma como olhou para o cliente do primeiro dia. É isso que a faz perder mais tempo no quarto e é por isso que as batatas se estragam. Estando tudo cronometrado como habitualmente, não havia razão para as batatas cozerem de mais.
c disse…
Eheheh, temos de organizar uma sessão comentada.

Ok, passa-se qualquer coisa no segundo dia, mas não concordo com a formulação «ela tinha sentido prazer físico no encontro com o terceiro cliente», não é bem assim, desconfio. É mais da ordem do sobressalto, uma carga eléctrica que ela não compreende. E continuo a pensar que não tem nada a ver com o segundo ou o terceiro homem, podia ser outro qualquer. Bom, mas isto é a forma como cada um vê a personagem — é tão ambígua que permite que a desviemos para onde nos der na gana ou para onde conseguirmos.

Mas há certos factos e ela não deixa as batatas cozerem por demorar mais tempo com o segundo homem. Demora o mesmo tempo, mas quando sai está desorientada e despenteada porque lhe aconteceu uma coisa imprevista e esquisita e não acende a luz e não tapa a terrina onde guarda o dinheiro e comete um erro maior, em vez de coar as batatas e deixá-las apenas num lume muito brando para não arrefecerem, mas secas, vai tomar banho e quando vem tratar das batatas, já elas cozeram demasiado (para perceber os gestos de Jeanne é preciso saber bem das rotinas domésticas, Chantal observou estes gestos anos e anos).