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Mensagens

Costuras

Ontem li «Costuras», de Olga Tokarczuk (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição da Cavalo de Ferro), entre o Campo 24 de Agosto e Matosinhos Sul, de manhã bem cedo. A viagem de metro é mais longa do que o conto (dez páginas e oito linhas), passei o resto do percurso a olhar pela janela para tentar alhear-me da história e enfrentar um dia de trabalho banal. Continuava, porém, a ver as costuras das meias, a cor acastanhada da tinta das esferográficas, a forma dos selos. Aqueles objectos tomaram a vez dos pensamentos, alastravam pela cabeça criando uma tremenda inquietação material. Conseguia, não compreender (nunca ninguém consegue), mas pressentir o desassossego de B.  No regresso, ao fim da tarde, voltei a ler o conto e tirei as dúvidas: é dos tais, dos que nos encostam à parede, dos que não nos largam mais.  A tradução inglesa (de Jennifer Croft) pode ser lida aqui .

Os assalariados vão ao cinema

Ontem depois da sessão de Kommunisten , fui levar o Rui a casa. Quando estávamos a chegar a Antero de Quental, comentámos que antes do cinema tínhamos arrumado a casa e feito sopa: o jantar já estava guiado. E aí percebi claramente que Jean-Marie Straub fez o filme para nós, pobres assalariados — para podermos lavar os olhos no pouco tempo que nos sobra.

흰개미

A Térmita é a livraria mais cinematográfica que conheço. Não é só uma questão de livros, aquele sítio mantém intacto o passar do tempo — basta olhar para os tectos, para as paredes, para os caixilhos das portas a descascar. Entra-se por um corredor escuro e lá dentro o espaço tem uma forma estreita e alongada que lhe dá uma atmosfera de coisa proibida (uma espécie de Budapeste para intelectuais solitários, diz a caixa de luz e o holofote vermelho sobre a porta ou as manchas de humidade). E por causa das ligações ao Candelabro, há uma pequena cozinha bem visível onde às vezes se trabalha e uma garrafeira escondida.  Tudo pode acontecer ali; principalmente um filme de Hong Sang-Soo.

Selfie XIV

Os protocolos oficiais aborrecem-me, mas gosto de criar pequenos protocolos pessoais que passam despercebidos. Por isso e apesar de não estar frio, vou levar o meu cachecol vermelho para a sessão de Kommunisten . É um gesto mais ou menos entre o cepticismo de Godard e John Wayne num filme do Ford. Cada um segue os modelos que pode.

Admiradores desconhecidos

Nunca devemos responder a cartas de desconhecidos. Quando as recebia, agora compreendo, era porque falavam de mim na «imprensa». Como já não publico e depois de uma certa «conspiração de silêncio» (!), mais ninguém repara na minha existência. Facto com que me congratulo. Mas que lição! E pensar que, como toda a gente, acreditei nos «admiradores»! (Outubro de 1962)  Acho que não recebi uma única carta de um desconhecido que fosse normal. De um desconhecido, entenda-se, que me tenha escrito entusiasmado, a quem dei alguma coisa e que confessou sentir afinidades comigo. Destroços, perdidos, infelizes, doentes, dilacerados, incapazes de inocência, corroídos, atingidos por todos os tipos de enfermidades secretas, falharam em todos os exames cá em baixo, arrastando atrás de si o seu jovem ou o seu velhíssimo desconcerto. Nunca me pediram nada, porque sabiam que nada lhes podia oferecer. Só queriam dizer que me tinham compreendido... (Novembro 1968) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Memória

Há vários meses que a falta de memória está na ordem do dia. Membros do governo não têm memória dos factos. O Presidente da República também não se lembra das mensagens. Não são os únicos. O país inteiro parece ter-se esquecido da noite escura onde está mergulhado grande parte do seu passado. E, se olharmos em volta, também o mundo parece ter perdido a «fita do tempo».

O que resta de um pensador

De tudo o que Schopenhauer escreveu e pensou, apenas as explosões de humor permanecem vivas. Sempre que fala do seu sistema, e sabe Deus como insiste nisso, é chato, cai numa ladainha; assim que se esquece que é filósofo e que tem de permanecer fiel às suas teorias, é vivaço até mais não. O que resta de um pensador é o seu temperamento, quer dizer, o que o faz esquecer-se de si mesmo ; é pelas contradições, pelos caprichos, pelas reacções imprevisíveis e incompatíveis com as linhas fundamentais da sua filosofia, que diverte, desconcerta, interessa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1967).

No grau ínfimo da intenção literária

Talvez um dia mais tarde sintamos que aquela parte da nossa literatura, que surgiu no grau ínfimo da intenção literária, seja a mais intensa: todos esses relatos, cartas, diários, que se geraram nas grandes batidas, nos cercos, nos açougues do nosso mundo. Ernst Jünger, O Passo da Floresta . Tradução de Maria Filomena Molder.

Influenciadores do século XX

O meu «tipo»: pensamento obsessivo — estilo acrobático. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1965) 

Culpados

Esta semana, voltámos a ver Ladrões de Bicicletas. A insuportável via crucis do homem e do filho. A terrível cena final, de novo. O miúdo, em lágrimas, testemunha da impiedosa humilhação do pai. O pai derrotado e humilhado diante do filho. Mas, desta vez, a ausência de ricos, patrões, exploradores, revelou-se-me ainda mais óbvia e perturbante. Tudo se passa entre os pobres e miseráveis. O indigente que rouba o desvalido. O desvalido que trama o desgraçado. O operário que tenta passar à frente na fila do eléctrico. O velho da sopa dos pobres que mente ao homem desesperado e este que arrasta o velho para a rua. As trapaças no mercado de bicicletas em segunda mão. Etcétera, etcétera. O que fazer quando os culpados estão fora de campo? É mais simples culpar o vizinho da frente, o passageiro do lado, o tipo da caixa do supermercado. Também nisto o filme é tremendamente actual.
Não sou nem pensador, nem homem de acção (!), nem, nem, nem, nem tudo o que quiserem — sou um elegíaco do fim do mundo. Cioran descarregava nos  cadernos tudo o que lhe ia na alma. Não exactamente como filósofo. Aliás, Cioran não é um verdadeiro filósofo ou, melhor dizendo, não é um filósofo a sério : não respeita nem a disciplina nem os protocolos, está na filosofia a meio gás, sempre a cair noutros temas e também no chão.  Sou um filósofo-uivador. As minhas ideias, se é que as há, uivam; não explicam nada, explodem.   É apenas um homem solitário cheio de dúvidas, sofrimento e energia. Um homem que se atira às palavras como um guerreiro à procura de uma fórmula. Um pobre diabo. Um homem em constante movimento. Um homem encantador.

Prenda

Na Avenida da República, em Gaia, nos intervalos das decorações de Natal, há cartazes de um dos partidos da extrema-direita. A uma prenda com um laço luminoso, segue-se um cartaz da extrema-direita. A outra prenda luminosa, outro cartaz. E por aí adiante.

Meteorologia e poesia

Hoje não chove, diz a meteorologia. Lavo e ponho a secar o que faz mais falta: meias e cuecas. Agora, resta esperar que o vento faça o seu trabalho. «O vento é poesia imediata », escreveu Cioran. Às duas e meia da tarde, começa a chover. Um imenso aguaceiro. Ainda que próximas, não se deve confundir meteorologia com poesia.

Convite para sábado, 9 de Dezembro.

A livraria Térmita fica no Largo de Mompilher, n.º 5, no Porto (porta ao lado do Candelabro). Os Mompilher Rendez-Vous têm o grafismo dos Lina&Nando .

Existe esperança? Sim, existe. Mas não para nós.

Gaza, 29 de Novembro de 2023. AP Photo/ Mohammed Hajjar⁠. (Via DER TERRORIST)

Os olhos não querem estar sempre fechados

Um dos obstáculos ao trabalho de Huillet e Straub é o próprio cinema, isto é, a forma como ele se optimizou para ser uma actividade extremamente lucrativa que começa e acaba em classificações: a produção define o tipo de história (policial, comédia romântica, musical, etc. etc.), arranjam-se verbas enormes de financiamento, formam-se equipas (talvez fosse mais certo dizer esquadrões?), o filme entra no ciclo rápido de execução e, no fim da linha de montagem, os críticos classificam-no com estrelas. Trata-se de toda uma constelação fictícia, tão alheada do que se passa em redor que é raro encontrarmos nesses produtos audiovisuais a mais pequena centelha de vida — se cheiram a alguma coisa é a dinheiro. Mas é esse cinema que as pessoas reconhecem e esperam encontrar nas salas e na televisão, nos computadores e nos telemóveis. É uma corrente de imagens com uma força incrível que varre tudo e que já passou para as séries e para a publicidade e para a comunicação unipessoal das redes so

Até que elas adormeçam

[Matthew] Guthrie descrevendo os velhos costumes da Rússia, diz: «Observa-se também nas casas dos grandes, mulheres encarregadas de contar contos, Skaski … A sua ocupação consiste em entreter suas amas até que elas adormeçam, com contos semelhantes às Mil e Uma Noites árabes, antiquíssimo costume entre os orientais.» Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português , Vol. II.

Um filme de Danièle Huillet

Na apresentação de L’itinéraire de Jean-Bricard (2008) na Cinemateca Francesa, Jean-Marie Straub afirmou, para surpresa e confusão de todos, que se tratava de um filme hitchcockiano. Ele gostava dessas frases bombásticas e, creio, num sítio cheio de cinéfilos, deve-lhe ter dado ainda mais gozo deixá-los de boca aberta. No entanto, tudo o que ele diz é verdadeiro, mesmo que se encontre sob o efeito de fogo de artifício. Depois de recusar os raciocínios mais evidentes (e falsos), acabei por perceber que talvez Straub se referisse ao método. O filme já tinha sido discutido e estava todo planeado. No fundo  L’itinéraire de Jean-Bricard já existia, só faltava filmar . É nesse sentido que é hitchcockiano. É nesse sentido que é um filme (essencialmente) de Danièle Huillet.