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Mensagens

Nunca sei o que vou encontrar na biblioteca. Hoje trouxe um livro de Antonio Di Benedetto para não me esquecer dos argentinos e Os Últimos Dias da Humanidade para não me esquecer do que nos espera. 2024 promete ser mais um ano cheio de destroços.

Car je est un autre

( No te apoyes, / si estás solo, contra la balaustrada, / dice el poeta chino) A primeira cena de Fechar os Olhos passa-se nos arredores de Paris no Outono de 1947 (Víctor Erice tinha 7 anos, Franco asfixiava Espanha). Monsieur Lévy é um judeu sefardita abastado e solitário que vive com Lin Yu numa casa grande rodeada de árvores a que deu o nome de Triste-le-Roy ( La casa no es tan grande, pensó. La agrandan la penumbra, la simetría, los espejos, los muchos años, mi desconocimiento, la soledad ). Está para morrer e chama Monsieur Franch para o encarregar de uma missão difícil: descobrir e trazer até ele a sua única filha Judith que a mãe levou para Xangai há muitos anos e se chama agora Qiao Shu. ( ¿Pero qué es un nombre? ) Não quer morrer sem ver nos olhos da filha um sentimento puro onde se possa reencontrar. Tudo o que tem, a sua própria vida nada vale sem essa consagração. Quase parece o princípio de uma história de aventuras exóticas, sim, mas a forma como é filmada diz-nos

Uma canção para Erice

Não consigo escrever nada de jeito sobre Fechar os Olhos : apetece-me dizer tantas coisas e em sentidos tão diversos que as palavras nem se aguentam. Ah, se soubesse, escrevia uma canção para Erice. Um fado.

Os salvadores

É verdadeiramente comovente a preocupação da extrema-direita e dos ultraliberais pela «situação a que chegaram os nossos serviços públicos». A propósito destes benignos e sensíveis defensores do estado social, ocorre-me uma passagem de Um Sonho , de August Strindberg, na qual a tripulação de um navio em perigo «grita horrorizada ao ver o seu salvador» e «atira-se ao mar, com medo dele».
 

Soma de derrotas = vitória

21 de Dezembro  A única solução: continuar como se nada fosse; aconteça o que acontecer, um dia havemos de ganhar a causa. Perante quem? Não importa. O certo é que, se permanecermos nós mesmos, se tivermos a coragem de defender a nossa causa até ao fim, a soma de derrotas que teremos experimentado equivalerá a uma vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Depredação

Em Os Favoritos da Lua , de Otar Iosseliani, há um quadro que é roubado várias vezes ao longo do filme. Sempre que um novo ladrão palma o retrato, a tela é cortada à pressa da moldura, perdendo mais um bocado da imagem. No final, o quadro está reduzido a metade. Quem não tenha conhecido o original, vê apenas a parte que resta, tomando-a pela imagem toda. Uma ideia engenhosa para ilustrar a depredação causada pelo tempo e pelos homens. Sobretudo pelos homens. Por exemplo, a depredação do estado social. Dos direitos laborais. Da democracia. Isto é mais uma achega a propósito do que a Cristina escreveu aqui .

Traduzir

No emprego anterior chamaram-me comunista . Esta semana foi sindicalista , acusaram-me ainda de não respeitar as hierarquias e ter a mania de defender os mais fracos . Reagi como um modelo sonâmbulo de Bresson, mas por dentro toda eu era contentamento; estou a conseguir traduzir, não só as palavras, mas também os gestos e as ideias dos livros que leio e dos filmes que vejo. Uma tradução de acção, action translation .

As minhas datas-chave

Sou mais velho do que Baudelaire quando dizia que tinha mil anos, por isso:  1842. A floresta alemã é interdita aos pobres (madeira morta, cogumelos, castanhas, etc.); converte-se num local de exploração industrial. O jovem Karl Marx insurge-se; o que lhe custa o emprego de jornalista na Gazeta da Renânia.  Inverno de 1942. Estou a patinar no Moselle coberto por uma espessa placa de gelo. ESTALINEGRADO! «Finalmente o princípio do fim», diz o meu pai.  1945. Alguns dias antes do fim da guerra, só para impressionar Estaline, os B17 americanos bombardeiam duas vezes uma das mais belas cidades alemãs, Dresden, destruindo-a e causando mais vítimas (civis) do que as bombas (atómicas) lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki para nos libertar do «perigo amarelo».  Até 1948. A ESPERANÇA! Leis da concorrência. Nacionalizações, expropriações (a família Renault, por exemplo). O PLANO (económico) francês é mais audacioso do que o de Walter Ulbricht na República Democrática Alemã alguma vez será. Le
Otar Iosseliani, Aprili , 1961.

Círculos

Uma amiga diz-me que as imagens que a televisão mostra de Gaza lhe lembram Alemanha, Ano Zero . Andamos às voltas e regressamos sempre ao ponto de partida. Como o gato de que Meyrink fala no Golem : «Tinha uma ferida no cérebro e andava em círculos, titubeando.»

Da próxima vez

Estava muito predisposta ao filme japonês do Wim Wenders e algumas críticas eram tão arrebatadoras (tirando o Eurico de Barros que escreve como se fosse a irmã de Hirayama) que me meti no carro para enfrentar o trânsito natalício. Fiquei um bocado desanimada porque Dias Perfeitos  pareceu-me apenas um filme simpático que nos mostra as deslumbrantes casas de banho públicas de Tóquio (a maior parte delas irritariam o sombrio Tanizaki) e um tipo que vive como se fosse um gato. Kōji Yakusho é um belíssimo actor que fala pouco ou em voz baixa e o filme aguenta-se graças a ele e às paisagens, mas falta qualquer coisa. Também fiquei admirada porque todos os textos que li referiam a felicidade dos pequenos gestos do dia a dia à semelhança da canção do Lou Reed, mas o filme tem uma carga simétrica de tristeza. Ninguém a vê? Uma das pistas talvez seja o que a livreira (ela conhece todos os livros que vende? caramba, que mulher notável!) diz sobre Patrícia Highsmith, sobre a diferença entre ansie

Selfie XV (coentros e rabanetes)

Os últimos tempos têm sido muito proveitosos para o meu curriculum de vão de escada .  Depois de ter sido trocada por uma musicóloga mais encartada para um distinto evento cultural, consegui introduzir a palavra «rabanete» nas conversas eruditas da Antena 2. (Claro que estas façanhas só foram possíveis graças à intervenção de altos patronos.) Por este andar ainda acabo por atingir o meu grande objectivo: entrar num filme de Rivette! Um musical é que era, já tenho o avental posto...

A morte dos avarentos

Um avarento jazia mui mal enfermo pera morte. Este homem havia muitas riquezas e nunca se aproveitava delas nem tanto a Deus, nem quanto ao mundo, nem pera seu corpo. E jazendo assim chegado à morte, sua mulher entendendo que não havia em ele vida, chamou uma sua servente e disse-lhe: — Vai tostemente e compra três varas de burel pera envolvermos meu marido em que o soterrem. E disse-lhe a servente: — Senhora, vos havedes uma grande teia de pano de linho, dade-lhe quatro ou cinco varas ou aquilo que lhe avondar em que o soterrem. E a senhora disse-lhe queixosamente: — Vai faze o que te mando, ca bem lhe avondaram três varas de burel, segunda eu sei a sua condição e a sua vontade. E estando em isto falando a dona e a servente, ouviu isto aquele homem avarento, e esforçou-se quanto pôde pera falar e disse: — Não comprade mais que três varas de burel, e fazede-me o saco curto. (...) Citado por Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português , Vol. 2.

Rigidez e graça

Visita de um professor japonês, Tadoo Arita, e da sua mulher. Decididamente, este povo tem classe. Nem o menor traço de vulgaridade! Têm «estilo» como os franceses devem ter tido noutro século e como os ingleses ainda têm um pouco. Rigidez e graça — paradoxalmente combinadas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (março de 1967).