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Mensagens

Ah, ah, ah!

Aki Kaurismäki, numa entrevista ao jornal , comenta assim o «sucesso» que o notável  Folhas Caídas tem tido um pouco por todo o lado: «Acho que as pessoas gostam, especialmente os críticos, porque é um filme curto, dura 81 minutos...»

Directamente do Quartel-General do Comando Supremo das Potências Aliadas

Para erguer a tese do estilo transcendental, Paul Schrader cita vários autores conceituados. Os nomes e os títulos das obras agrupam-se nas notas de rodapé. Gosto particularmente da nota 23 que surge na página 85:  A Divisão de Recursos Religiosos Culturais das Potências Aliadas assinalou: «O tipo de conduta que normalmente se exprime através das palavras "espírito japonês" é essencialmente Zen na sua natureza.» 23 23 William K. Bunce (ed.) Religions in Japan , relatório preparado pela Divisão de Recursos Religiosos e Culturais, Secção de Educação e Informação Civil, Quartel-General do Comando Supremo das Potências Aliadas, Março de 1948, Tóquio: Charles E. Tuttle, 1955, p. 90.

Lugares sentados

Não há lugares sentados no autocarro. Alguns passageiros viajam de pé. Um homem sentado começa a falar com outro. A conversa fiada das redes sociais, dos tablóides e da televisão: os «corruptos», os «ladrões», o «país a saque». Estão ambos animados, confortáveis, a flutuar na temperatura amena do ar condicionado. Os passageiros sentados em frente esticam as pernas, cruzam os braços e concordam: a «ladroagem» assim, os «gatunos» assado. Os que viajam de pé não falam. Agarram-se com força aos ferros; receiam uma travagem brusca ou uma rápida mudança de direcção.

O preço das coisas

Dois tipos falam de negócios no Piolho. Um jogador que vai ser transferido e render não sei quantos milhões. Outro que custou uma quantia faraónica e que nem sequer joga. A gestão dos activos que tem sido ruinosa. As opções de investimento que têm de ser mais ousadas. Etc., etc. O café e a meia torrada, felizmente, ainda custam o mesmo.

Passagem entre prédios

Ainda não tive tempo suficiente para ler as quase mil páginas d’  Os Últimos Dias da Humanidade  (devia haver uma baixa médica para resolver assuntos literários deste calibre), mas já deu para perceber que em tempos conturbados o mais importante é aprender a desaparecer numa passagem entre prédios .  GRITOS ENTRE A MULTIDÃO: “Mas que é que querem aqueles dois judeus além?” “Têm cara de também serem dos Balcãs!” “Só lhes falta o cafetã!” “São sérvios!” “Traidores!” “Porrada neles!” ( Os dois historiadores desaparecem num passagem entre prédios. ) ( Muda a cena .)

Palavras de outra ordem

Num dos seus discursos recentes, Pedro Nuno Santos disse: «O Portugal que queremos construir é um Portugal onde todos têm lugar , onde ninguém é esquecido, onde ninguém é invisível e fica para depois.» A referência ao Teatro Natural de Oklahoma é evidente. No cartaz junto ao Estádio do Mar, Mariana Mortágua é empurrada para a acção com a frase «não lhes dês descanso» — sem dúvida, uma variante de «vai e dá-lhes trabalho!».  São palavras fortes e necessárias. Espero que eles estejam à altura das citações.

Folhas caídas

O novo filme de Nuri Bilge Ceylan chama-se As Ervas Secas . O de Aki Kaurismäki é Folhas Caídas . O último de Victor Erice começa num velho jardim meio esquecido e intitula-se Fechar os Olhos . Também entre os mestres, há um vago perfume a fim de qualquer coisa.

Menear-se

Todos esses professores, Heidegger à cabeça, que vivem como parasitas de Nietzsche, e que acham que filosofar é falar de filosofia. — Fazem-me pensar nos poetas que imaginam que a missão de um poema é cantar a poesia. Por toda a parte o drama do excesso de consciência: trata-se de um esgotamento de talentos ou de um esgotamento de temas? Dos dois, sem dúvida: falta de inspiração que acompanha a falta de matéria. Desaparecimento da ingenuidade; muito malabarismo, habilidade , nas coisas importantes. O acrobata suplantou o artista, o próprio filósofo não é senão um pedante que se meneia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Sobre Chantal Akerman

Imaginei tantas vezes a estreia de  No Home Movie.  Mas nunca assim...  Quero falar-vos de Chantal. Falar-vos de tudo o que me deu, tudo o que me ensinou, tudo o que partilhamos. Contar-vos como era radiante, inteligente, surpreendente e também divertida... Diz-se muitas vezes de Chantal que tinha princípios estéticos. Bom, eu acho que os princípios nos protegem, e Chantal não se protegia. Confiava no que estava para vir, sabia acolher o acaso.  Lembro-me de uma história que lança alguma luz sobre a sua forma de trabalhar. Durante a preparação de La Folie Almayer , ela precisava de um porto. A assistente perguntou-lhe se queria um porto grande ou um porto pequeno. Ela respondeu «um porto grande». Mais tarde, perguntamos-lhe se tinha a certeza que era isso que queria, porque talvez um porto pequeno fosse mais acolhedor. Recordo-me que íamos pela rua e Chantal estava ao telefone. Parou, bateu com o pé e disse «quero um porto grande, foi o que disse, não me peçam para explicar porquê». Nã

Funcionários

Malditas galinhas cegas às quais os grãos acontecem! Pedreiros cegos que põem tijolo sobre tijolo há milénios sem saber o que estão a construir! Eles são funcionários. Eles são colaboradores. Se um diz a , o outro diz b , e o terceiro c , e assim se forma a Opinião dominante; todos são função de todos, todos se servem de todos, todos são sempre servos - sugados pelo intelecto do vampiro, empurrados para baixo pelo Pensamento que cresce sobre eles, cada vez mais inantigível. Witold Gombrowicz, Diário (Vol. II).  Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.
1 de Janeiro de 1969  Fui passear entre Étréchy e La Ferté-Alais. Neve e nevoeiro, um nevoeiro tão suave que as árvores pareciam fumo imobilizado. Raramente vi uma paisagem tão poética. Tudo era irreal — e depois, por causa do gelo, as estradas estavam desertas.  Entrei num cafezinho em Villeneuve-sur-Auvers, onde ouvi uma canção americana (inglesa?) « Those were the days » que, pela entoação elegíaca, me comoveu mais do que seria de esperar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.
Nunca sei o que vou encontrar na biblioteca. Hoje trouxe um livro de Antonio Di Benedetto para não me esquecer dos argentinos e Os Últimos Dias da Humanidade para não me esquecer do que nos espera. 2024 promete ser mais um ano cheio de destroços.

Car je est un autre

( No te apoyes, / si estás solo, contra la balaustrada, / dice el poeta chino) A primeira cena de Fechar os Olhos passa-se nos arredores de Paris no Outono de 1947 (Víctor Erice tinha 7 anos, Franco asfixiava Espanha). Monsieur Lévy é um judeu sefardita abastado e solitário que vive com Lin Yu numa casa grande rodeada de árvores a que deu o nome de Triste-le-Roy ( La casa no es tan grande, pensó. La agrandan la penumbra, la simetría, los espejos, los muchos años, mi desconocimiento, la soledad ). Está para morrer e chama Monsieur Franch para o encarregar de uma missão difícil: descobrir e trazer até ele a sua única filha Judith que a mãe levou para Xangai há muitos anos e se chama agora Qiao Shu. ( ¿Pero qué es un nombre? ) Não quer morrer sem ver nos olhos da filha um sentimento puro onde se possa reencontrar. Tudo o que tem, a sua própria vida nada vale sem essa consagração. Quase parece o princípio de uma história de aventuras exóticas, sim, mas a forma como é filmada diz-nos

Uma canção para Erice

Não consigo escrever nada de jeito sobre Fechar os Olhos : apetece-me dizer tantas coisas e em sentidos tão diversos que as palavras nem se aguentam. Ah, se soubesse, escrevia uma canção para Erice. Um fado.

Os salvadores

É verdadeiramente comovente a preocupação da extrema-direita e dos ultraliberais pela «situação a que chegaram os nossos serviços públicos». A propósito destes benignos e sensíveis defensores do estado social, ocorre-me uma passagem de Um Sonho , de August Strindberg, na qual a tripulação de um navio em perigo «grita horrorizada ao ver o seu salvador» e «atira-se ao mar, com medo dele».