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Influencers

Parece-me que as coisas finalmente começam a acalmar um pouco. As boas almas dos jornais, os grandes educadores televisivos do povo, os influencers de facebook, já desistiram, pelo menos em parte, de nos aconselhar enxurradas de livros, filmes ou peças de teatro online para «passar melhor o tempo em casa». Não é justo para Kurosawa, mas quando penso nestes bons «conselheiros», a imagem que me ocorre é a de Yuzo, personagem de «Um domingo maravilhoso», a dirigir a «Sinfonia Inacabada», de Schubert, diante de uma orquestra silenciosa de músicos invisíveis, num anfiteatro vazio. Não, não é justo para Kurosawa.

Obras para quê?

Vale Formoso, Antero de Quental, Largo da Lapa, Regeneração. A Utopia já reabriu, mas não há livros novos na montra. Aceno a um Herculano mascarado. Ele devolve o cumprimento. Há um vidro entre nós. Praça da República. Alguém escreveu sobre um aviso camarário de obras a frase «Obras para quê?» A interrogação, neste momento, parece ser válida para tudo: arte, literatura e construção civil. Rua do Almada, Ricardo Jorge, Largo do Mompilher. As sapatilhas estão velhas e fazem-me doer os pés. Rua da Conceição, Mártires da Liberdade. A Académica continua fechada. Praça da República, Rua da Lapa. A velha caixa de esmolas da Capela do Senhor do Olho Vivo foi assaltada. Tentaram arrancar a caixa da parede, mas as moedas não saíram do sítio. Antero de Quental, Vale Formoso. A tinta verde da porta da rua está a descascar. Há ferrugem na fechadura. Dores nas pernas e nas costas.

Ontem

Talvez tenha sido o dia mais quente do ano. Cheirava a Verão. Decidimos sair um pouco para apanhar sol e desentorpecer as pernas. Na rua, as pessoas afastavam-se umas das outras com um silêncio envergonhado, que dissimulavam atrás das máscaras. Um saco do lixo descia a Lapa aos saltos, entre duas gaivotas enlouquecidas.

Máscara

Os jornais dão conta de que o uso de máscara vai ser obrigatório em múltiplas situações. É impossível não pensar no teatro. De um momento para o outro, somos forçados a usar máscara para continuar a desempenhar o nosso papel na grande representação do mundo. O teatro já não imita a vida. É a vida que imita o teatro. DUQUE SÉNIOR Bem vês que não estamos sós no infortúnio: Este teatro imenso e universal Tem representações mais lastimáveis que a cena Em que entramos. JAQUES O mundo é um palco E todos os homens e mulheres simples actores: Têm as suas saídas e entradas, E, em vida, um só homem tem vários papéis (...). Shakespeare, Como vos aprouver. Tradução de Fátima Vieira.

Vizinho

Não sei o nome. É o homem que passa a manhã à janela, no prédio em frente. Começámos a cumprimentar-nos com um gesto silencioso de mão e um sorriso tímido de cortesia. A pandemia devolveu-nos alguns gestos, mas também algumas palavras. As palavras «janela», «vizinho», «rua», «bairro». Ou o termo «redes sociais». Pouco a pouco, entre uma janela e outra, de um lado ao outro da rua, limpamos a gordura que se acumulou sobre as palavras e redescobrimos a sua pureza.

- E agora?

Lembro-me daquele plano de um dos filmes mais misteriosos de Herzog. O carro a rodar em círculos, sem parar e sem ninguém ao volante. Como um estranho relógio a marcar as horas de um outro mundo. De um outro mundo ou deste mundo?

Ponto de situação

O que se sabe, com segurança, sobre o vírus? Sabe-se que pode ser fatal, que em alguns casos provoca sintomas graves, noutros apenas ligeiros e, noutros ainda, não provoca sintomas nenhuns. Pode acontecer tudo, incluindo nada. Exactamente como numa história de Daniil Harms.

Câmara ligada

Longas e intermináveis reuniões de teletrabalho. Horas e horas com a «câmara ligada». O meu rosto no ecrã tem uma força magnética qualquer. Não consigo desviar o olhar de mim próprio. Todos os movimentos e gestos me atraem. Mexo no cabelo com a intenção de me ver. Sorrio e passo a mão pelo rosto como num filme. Os gestos mais simples e involuntários parecem controlados, estudados, ensaiados, falsos. Estou a representar o meu papel e sou um péssimo actor. Bresson jamais me contrataria.

Vista de mar

Ontem, parou de chover. O céu adquiriu uma pureza extraordinária, de um azul ofuscante, varrido pela espuma de uma ou outra nuvem. Bandos de gaivotas pairam no ar, como pequenas ideias, distantes e vagas. É a nossa «vista de mar» sem praia.

Lento regresso à normalidade

Os jornais de hoje dão conta de que entramos numa nova fase da gestão da pandemia: começa agora o «lento regresso à normalidade». A primeira imagem que me ocorre é a do velho Biaggio, em Roma, Cidade Aberta , que durante a rusga das tropas nazis não quer fazer-se de morto, expondo familiares e vizinhos ao risco de prisão ou, pior do que isso, à morte. Para o convencer, Don Pietro, o padre da comunidade, usa um argumento de peso: uma sertã aplicada com afinco no cocuruto do velho. Após a rusga e passado o perigo, Don Pietro tenta reanimar o pobre ancião desmaiado, como a Itália do pós-guerra, que acorda para um lento e penoso regresso à normalidade.

Fantasia submarina

Leio em Truffaut que os primeiros filmes de Rossellini foram documentários sobre peixes. Mordo o isco e encontro Fantasia submarina , uma curta-metragem, de 1940, que não é bem um documentário, mas uma fábula com animais marinhos. Rossellini construiu um aquário em casa para filmar o oceano. Segundo parece, o realizador e o director de fotografia, Rodolfo Lombardi, usaram vários peixes mortos, que animaram com truques engenhosos para dar vida à narrativa. Uma mentira para dizer a verdade. Hoje, encerrados nos nossos aquários de peixes mortos, falta-nos o sabor benévolo da mentira. Só há verdade.

Estado de excepção

Mas há outro motivo para o tremendo pânico. Novamente tem a ver com a digitalização. A digitalização elimina a realidade, a realidade é experimentada graças à resistência que oferece, e que também pode ser dolorosa. A digitalização, toda a cultura do “like”, suprime a negatividade da resistência. E na época pós-fática das fake news e dos deepfakes surge uma apatia à realidade. Dessa forma, é um vírus real e não um vírus de computador o que causa uma comoção. A realidade, a resistência, volta a fazer-se notar no formato de um vírus inimigo. A violenta e exagerada reacção de pânico ao vírus explica-se em função dessa comoção pela realidade. A reacção de pânico dos mercados financeiros à epidemia é, além disso, a expressão daquele pânico que é já inerente a eles. As convulsões extremas na economia mundial fazem com que essa seja muito vulnerável. Apesar da curva constantemente crescente do índice das Bolsas, a arriscada política monetária dos bancos emissores gerou nos últimos anos um p