Avançar para o conteúdo principal

Estado de excepção

Mas há outro motivo para o tremendo pânico. Novamente tem a ver com a digitalização. A digitalização elimina a realidade, a realidade é experimentada graças à resistência que oferece, e que também pode ser dolorosa. A digitalização, toda a cultura do “like”, suprime a negatividade da resistência. E na época pós-fática das fake news e dos deepfakes surge uma apatia à realidade. Dessa forma, é um vírus real e não um vírus de computador o que causa uma comoção. A realidade, a resistência, volta a fazer-se notar no formato de um vírus inimigo. A violenta e exagerada reacção de pânico ao vírus explica-se em função dessa comoção pela realidade.

A reacção de pânico dos mercados financeiros à epidemia é, além disso, a expressão daquele pânico que é já inerente a eles. As convulsões extremas na economia mundial fazem com que essa seja muito vulnerável. Apesar da curva constantemente crescente do índice das Bolsas, a arriscada política monetária dos bancos emissores gerou nos últimos anos um pânico reprimido que estava aguardando a explosão. Provavelmente o vírus não é mais do que a gota de água. O que se reflecte no pânico do mercado financeiro não é tanto o medo ao vírus quanto o medo a si mesmo. O crash poderia ter ocorrido também sem o vírus. Talvez o vírus seja somente o prelúdio de um crash muito maior.

Žižek afirma que o vírus deu um golpe mortal no capitalismo, e evoca um comunismo obscuro. Acredita inclusive que o vírus poderia derrubar o regime chinês. Žižek engana-se. Nada disso acontecerá. A China poderá agora vender o seu Estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia. A China exibirá a superioridade de seu sistema ainda mais orgulhosamente. E após a pandemia, o capitalismo continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão a calcorrear o planeta. O vírus não pode substituir a razão. É possível que chegue até ao Ocidente o Estado policial digital ao estilo chinês. Como já disse Naomi Klein, a comoção é um momento propício que permite estabelecer um novo sistema de Governo. Também a instauração do neoliberalismo veio precedida frequentemente de crises que causaram comoções. Foi o que aconteceu na Coreia e na Grécia. Espero que depois da comoção causada por este vírus não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês. Se isso ocorrer, como teme Giorgio Agamben, o estado de excepção passaria a ser a situação normal. O vírus, então, teria conseguido o que nem mesmo o terrorismo islâmico conseguiu totalmente.

Byung-Chul Han.
Texto completo na Revista Punkto.

Comentários