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O que resta de um pensador

De tudo o que Schopenhauer escreveu e pensou, apenas as explosões de humor permanecem vivas. Sempre que fala do seu sistema, e sabe Deus como insiste nisso, é chato, cai numa ladainha; assim que se esquece que é filósofo e que tem de permanecer fiel às suas teorias, é vivaço até mais não. O que resta de um pensador é o seu temperamento, quer dizer, o que o faz esquecer-se de si mesmo ; é pelas contradições, pelos caprichos, pelas reacções imprevisíveis e incompatíveis com as linhas fundamentais da sua filosofia, que diverte, desconcerta, interessa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1967).

Influenciadores do século XX

O meu «tipo»: pensamento obsessivo — estilo acrobático. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1965) 
Não sou nem pensador, nem homem de acção (!), nem, nem, nem, nem tudo o que quiserem — sou um elegíaco do fim do mundo. Cioran descarregava nos  cadernos tudo o que lhe ia na alma. Não exactamente como filósofo. Aliás, Cioran não é um verdadeiro filósofo ou, melhor dizendo, não é um filósofo a sério : não respeita nem a disciplina nem os protocolos, está na filosofia a meio gás, sempre a cair noutros temas e também no chão.  Sou um filósofo-uivador. As minhas ideias, se é que as há, uivam; não explicam nada, explodem.   É apenas um homem solitário cheio de dúvidas, sofrimento e energia. Um homem que se atira às palavras como um guerreiro à procura de uma fórmula. Um pobre diabo. Um homem em constante movimento. Um homem encantador.
Chantal Akerman: (...) Quando estava a filmar D’Est na Ucrânia, ficamos sem gasolina. Uns agricultores sugaram gasolina dos seus carros para nos dar, depois não queriam que fôssemos embora, prepararam-nos um banquete. Por mais pobres que fossem, conseguiram juntar o suficiente para nos oferecer uma refeição de rei. Não conheciam Prokofiev ou Shostakovich, mas sabiam que quando alguém está com fome é preciso dar-lhe de comer. Estaline «esqueceu-se» de planear as sementeiras e provocou uma fome na Ucrânia que fez 7 milhões de mortos. E, no entanto, ele era de lá, da Ucrânia. Nada é simples. Estes mesmos camponeses poderiam ter massacrado judeus durante a guerra. Estes mesmos ou outros.

Enquanto ainda é tempo

Gostava de fazer uma grande viagem através da Europa de Leste, enquanto ainda é tempo. Rússia, Polónia, Hungria, Checoslováquia, ex-Alemanha de Leste, até à Bélgica. Gostava de filmar por lá à minha maneira documental a roçar a ficção. Tudo o que me toca. Rostos, ruas, carros que passam e autocarros, estações de comboios e planícies, ribeiras ou mares, rios e riachos, árvores e florestas. Campos e fábricas e mais rostos, comida, interiores, portas, janelas, preparação de refeições. Mulheres e homens, jovens e velhos que passam ou que param, sentados ou de pé, às vezes até deitados. Dias e noites, chuva e vento, neve e a Primavera. Tudo isso que se transforma docemente, ao longo da viagem, os rostos e as paisagens. Todos esses países, em plena mutação, que passaram por uma história comum depois da guerra, ainda muito marcados por essa história nas próprias sinuosidades da terra, mas cujos caminhos agora divergem. Gostava de gravar os sons dessa terra, fazer sentir a passage

A estranheza do branco

Quatro horas de caminhada. A Beauce completamente coberta de neve. Frio intenso: 5°. Avanço nesta pequena estrada que mal se distingue da camada branca: um simples ponto na imensidão. Estou impressionado com a estranheza do branco. Diz-se, creio, branco como a morte. Sensação de caminhar noutro planeta. Total irrealidade. O sol alinhava no jogo. Também ele irreal. Se todo o universo estivesse contra mim, se eu fosse execrado quer por homens quer por deuses, nada me podia tocar ou abalar: que se pode fazer contra um ponto? um ponto no meio de uma extensão cor de nada? um nada no inexistente?   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (3 de janeiro de 1971) 

Condição de sobrevivente

Esta manhã, por volta das 3h, do Colégio Militar ao Odéon, meti por ruelas completamente solitárias. Nem vivalma. Frio. E ocorreu-me a ideia de que caminhava por uma cidade onde todos os vivos tinham sido exterminados instantaneamente (guerra bacteriológica?). Nenhuma angústia nem satisfação. E pensei que nos adaptamos depressa à condição de sobrevivente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (22 de novembro de 1968) 
Começamos a saber o que é a solidão quando escutamos o silêncio das coisas. Então compreendemos o segredo enterrado na pedra e revelado na planta, o ritmo oculto ou visível da Natureza toda inteira. O mistério da solidão deriva do facto de para ela não existirem criaturas inanimadas. Cada objecto tem a sua linguagem, que deciframos graças a silêncios incomparáveis. Lágrimas e Santos, Emil Cioran. Edições 70, novembro 2022. 

Obsessões e caprichos

Vou agarrar-me a estes cadernos pois são o único contacto que mantenho com a «escrita». Há meses que não escrevo mais nada.  Este exercício diário até é bom, permite-me aproximar-me das palavras, e despejar aqui as obsessões, ao mesmo tempo que os caprichos: o essencial e o inessencial ficarão registados por igual. E tanto melhor assim. Pois nada é mais ressequido e fútil do que a busca exclusiva da «ideia». O insignificante deve ter direito de cidadania, até porque é por ele que acedemos ao essencial. A anedota está na origem de toda a experiência capital. É por isso que é mais cativante do que qualquer ideia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1968)

Maio de 1971

Prefiro um assassino gentil a um santo sem maneiras.  Gostava de ser canibal, menos pelo prazer de devorar esse imbecil do X, do que para o poder vomitar logo a seguir.  Exclamações . Que belo título!  Fui feito para vociferar ou para fazer chacota?  Para as duas coisas, para uma síntese irrealizável. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Universo falhado

É a última anotação dos Cadernos . Não tem data, pode ser novembro ou dezembro de 1972. Nota-se que Cioran está cada vez mais ferido, pressente-se o declínio. A partir daí, é preciso atravessar um túnel escuro. «Sem a ideia de um universo falhado, o espectáculo da injustiça sob todos os regimes levaria até mesmo um indiferente à camisa-de-forças.»

A escada

24 juin   Variations Goldberg … Après ça, il faut tirer l’échelle.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  A expressão francesa significa que se atingiu o máximo, não se consegue fazer melhor. Podemos meter o dicionário no bolso e ir por aí com segurança: «… Depois disto, não se fará melhor». Ou então, realçar uma certa renúncia que está implícita (e é bem cara a Cioran) e contrapor, com alguma malícia, uma expressão do tipo: «… Depois disto, mais vale arrumar as botas».  Mas, na verdade, continuo a pensar na escada e também (e acima de tudo) no gesto de a deitar fora  ( com extrema secura ): «... Depois disto, deitar fora a escada».
Cheguei ao fim de 1971, só falta um ano para o fim, trinta e tal páginas.  31 dez. 1971 Esta noite, pesadelo grandioso, desproporcional, vertiginoso.  Acordei a chamar pela minha mãe...  Quanto a dizer em que consistiu esse pesadelo, sinto-me incapaz.  1º Janeiro de 1972  Tristeza constante que me parece inútil analisar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Um recadinho amoroso

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971)

Fugir do verão como da peste

Devia reconsiderar o «problema» do suicídio: parece que negligenciei os seus aspectos mais interessantes. Podia considerá-los agora, pois notei que é de preferência no verão que me sinto disposto a abordar uma questão destas. Será o calor? Será a luz? O sol sempre me incitou a repensar este mundo e despertou em mim crises de melancolia às vezes insuportáveis. As minhas «trevas» impedem-me de me pôr em uníssono com o esplendor envolvente; do choque entre o que sinto e o que vejo nasce este estado de humor negro e tudo o que daí advém.  O verão é a estação das grandes impossibilidades. O sol é um fornecedor de ideias negras . Nada convida tanto à melancolia como uma paisagem devastada pela luz. Fugir do verão como da peste. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Jornada

Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Saltarinheiro

14 de outubro (1970) A. A. envia-me o Diário de Vlasiu onde se fala muito de mim tal como era em 1938-39.  Esse eu de que Vlasiu fala, por mais que tente, não o consigo reconhecer: escapa-me, tem a consistência de um espectro. É verdade que não se percebe lá muito bem como é que nos podemos reconhecer quando somos evocados por um saltarinheiro, por um escroque ao mesmo tempo bilioso e cheio de encanto, um labrego manhoso e cabotino como não há outro.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972   Traduzir os Cadernos  obriga-me, constantemente, a procurar uma data de insultos em português. Não são uns insultos quaisquer, têm de ser potentes e encantores ao mesmo tempo (mais ou menos:  pulverizar, mas com dedicação ).  Para além da alegria que me dá no momento, fico preparada para eventuais reclamações, guerrilhas e discussões. E também deve dar pontos no curriculum vitae .

Vencidos da vida

Ataque de fúria, mais uma vez. Será possível deixar passar os dias como eu faço? Há meses que não escrevo nada, nada, nada, nada! Irrito-me como uma puta sem clientes, barafusto contra tudo e amaldiçoo-me! Ou então consolo-me pela minha esterilidade e pelos meus fracassos, entregando-me a essa voluptuosidade de saber que já não existo para ninguém. Como se tivesse existido! Invento este esquecimento que, falso ou real, me dá uma amargura apaziguadora. Não existir mais para ninguém! Mas toda a gente, cedo ou tarde chega lá, inevitavelmente. É a grande consolação dos vencidos.  Uma miséria da qual não consegui livrar-me: a doçura da autocomiseração.  Esta manhã reflecti de novo nas possibilidades que o suicídio oferece. E depressa superei o meu acesso de fúria.  Devíamos gravar no frontispício das câmaras municipais e das igrejas: Todos nós somos vencidos .  É mais fácil viver com esta divisa do que com falsos boletins de vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972