Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Bruscon diz

(...) Se formos honestos não podemos fazer teatro nem podemos se formos honestos escrever uma peça de teatro nem representar uma peça de teatro se formos honestos não podemos em absoluto fazer outra coisa que não seja suicidarmo-nos como porém não nos suicidamos porque não nos queremos suicidar pelo menos até hoje e até este momento não como portanto até hoje e até este momento não nos suicidámos continuamos a tentar o teatro escrevemos para o teatro e representamos teatro ainda que tudo isso seja a coisa mais absurda e a maior das fraudes Como pode representar o papel de rei um actor que não faz sequer uma vaga ideia do que é um rei como pode representar o papel de moça de estrebaria uma actriz que não faz sequer uma vaga ideia do que é uma moça de estrebaria quando um actor do Nacional representa o papel de um rei só consegue ser sensaborão e quando uma actriz do Nacional representa o papel de moça de estrebaria só consegue ser ainda mais sensaborona mas

Mesmo nos dias enevoados e durante a noite

O Tio Lucas ensinara um cão a dançar. domesticara uma cobra e fizera com que um papagaio dissesse as horas por meio de gritos, conforme os ia marcando um relógio de sol que o moleiro tinha traçado numa parede; e daí resultara que o papagaio dava já as horas com toda a precisão, mesmo nos dias enevoados e durante a noite. Pedro Antonio de Alarcón, O chapéu de três bicos . Tradução de Manuel do Carmo.

O prazer do tabaco

Georgine Ulyanov, cuja beleza oferecia atractivos que nunca cansavam. Georgine Ulyanov, cujos longos caracóis de ouro caíam em cascata sobre os ombros mais bem modelados que a natureza tem produzido nas suas horas de perfeição. Georgine Ulyanov, cuja nobre face resplandecia com a brancura da flor-de-lis e o vermelho das rosas. Georgine Ulyanov, cujos olhos lembravam os de um falcão solitário, pairando cada vez mais alto. Georgine Ulyanov, cuja boca miúda parecia ter por lábios dois admiráveis rubis. Georgine Ulyanov, cujo narizinho de fina pele valia um poema. Georgine Ulyanov, cujo perfume, oh, senhores – como direi? – punha a imaginação dos cronistas em lufa-lufa. Georgine Ulyanov, que era uma clássica adepta – e peço desculpa pela locução pomposa, mas expressiva – do dolce far niente. Georgine Ulyanov que aparecia todas as manhãs na mais festiva disposição de espírito. Georgine Ulyanov por quem se tinham suicidado oito cavalheiros, talvez dez. Georgine Ulyanov, que era de uma ine

Foi ontem

Sinto-me liberto de um grande fardo. Que sorte inesperada! Que vão para o diabo as insígnias de engenheiro, os instrumentos e os orçamentos de obras! Não é vergonhoso regozijar-se um homem com a morte duma pobre tia, pelo único motivo de ela lhe ter deixado uma herança que lhe permitirá aposentar-se? É certo que, ao morrer, me suplicou que me consagrasse à minha ocupação preferida e que, entre outras coisas, me alegra cumprir o seu voto supremo. Foi ontem... Que cara fez o meu chefe quando lhe anunciei a intenção de me demitir! E ao conhecer o motivo, ficou de boca aberta. - Por amor à arte?... Hum!... Faça o requerimento. Vsevolod Garchine, A flor vermelha . Tradução de Marília Guerra de Vasconcelos.
Ver O Passado e o Presente só agora (última quinta-feira à noite na RTP2, integrado numa homenagem de circunstância), fora de ordem cronológica e depois dos outros amores frustados de Manoel de Oliveira, é uma experiência curiosa — é mais ou menos como encontrar um pedacinho de papel rasgado que nos permite decifrar um recado antigo. Se a palavra não fosse tão pesada, aventurava-me a dizer que este filme é um programa , mas o ritmo não consente. O ritmo começa por ser a música de Mendelssohn (camada sobre camada, "Sonho de uma Noite de Verão" sobre os desenganos amorosos de Shakespeare), essa é a primeira impressão do cinema mudo e é assim que o filme abre. Depois, pouco a pouco, vamo-nos apercebendo que o ritmo é tudo: desde a câmara excitada e ágil ao enquadramento rigoroso, dos movimentos diletantes dos actores aos diálogos um bocado gagos e, por isso mesmo, perfeitos para a função (a gaguez é uma das características mais potentes da modernidade). Manoel de Oliveira dis

Esfregar a barriga sem tirar as mãos dos bolsos

- Tu dizes que a arte não deve excitar o desejo - repôs Lynch - Já te contei que um dia escrevi o meu nome, a lápis, no traseiro da Vénus de Praxíteles, no Museu. Não seria isso desejo? - Estou a falar de naturezas normais - explicou Stephen. - Também me contaste que quando eras criança, na tua inefável escola carmelita, comias pedaços secos de bosta de vaca. Lynch não pôde conter-se e soltou de novo as suas risadas vagas, esfregando outra vez a barriga, mas sem tirar as mãos dos bolsos. - Mas comi! Mas comi! - exclamava ele. (...) - E não te esqueças, peço-te, que, muito embora tenha comido outrora um bolo de bosta de vaca, admiro unicamente a beleza. James Joyce, Retrato do artista quando jovem . Tradução de Alfredo Margarido.

Tú leíste Palomita Blanca? Cuéntamela

Es fascinante lo que hizo Raúl Ruiz cuando adaptó Palomita blanca. Era una novela que estaba muy de moda en Chile; la había escrito Lafourcade, por quien Raúl no tenía ningún tipo de respeto. Entonces aceptó el desafío pero dijo que no iba a leer la novela. Cómo hacer la adaptación de una novela que no vas a leer. Hizo algo fascinante: convocó desde las revistas para adolescentes al cásting para buscar a Palomita Blanca, se armó una fila larguísima y él las filmó a todas. Entonces les preguntaba “¿Tú leíste Palomita Blanca? Cuéntamela”. Las que la habían leído le contaban lo que se acordaban, y las que no la habían leído inventaban. Con la mezcla de lo que se acordaban más lo que inventaban él hizo la película. En el fondo es una manera fantástica de quedarte con el espíritu de la novela. Gonzalo Maza.

Plano para acabar com o mundo

Wilbert Frederick tinha um plano para acabar com o mundo. Um plano diabólico e terrivelmente eficaz. Dizer que ele fervia de entusiasmo com a ideia, como se estivesse possuído por mil demónios enegrecidos, é pouco. Pela primeira vez na vida, sentia-se feliz. Uma felicidade que se adivinhava pelas gargalhadinhas maldosas e frases ameaçadoras, debitadas de enfiada sem pontos nem vírgulas. Ora, antes de pôr a coisa em marcha, e como é usual em tais ocasiões, Wilbert Frederick guardou o plano num cofre. Um cofre secreto e inviolável, cuidadosamente fechado com uma chave também ela inviolável e secreta. Depois, esfregando as mãos como um actor de teatro, saiu de casa para beber uma cerveja. Pois bem, por alguma manobra do destino difícil de explicar, perdeu a chave no caminho. E apesar de todos os esforços para a recuperar, esta nunca mais apareceu e o cofre não mais foi aberto. Wilbert mergulhou então no mais horrível desespero, enredando-se num discurso alucinado, em que infância e erva
Van Gogh, 1886.

Títulos

Um drama, mesmo quando nos pinta paixões ou vícios que têm nome, incorpora-os de tal maneira na personagem que os seus nomes são esquecidos, os seus caracteres gerais se apagam, enquanto nós deixamos por completo de pensar neles para pensarmos na pessoa que os absorve; é por isso que o título de um drama dificilmente deixará de ser um nome próprio. Em contrapartida, numerosas comédias têm um nome comum: O Avarento , O Jogador , etc. Se nos pedirem uma peça que possa chamar-se, por exemplo, O Ciumento , ocorrer-nos-á ao espírito Sganarelle ou George Dandin , mas não Otelo ; um título como O Ciumento só pode ser um título de comédia. Henri Bergson, O Riso . Tradução de Miguel Serras Pereira.

Solavancos

Se quereis escrever sobre um calmo e doce amor, tomai o autocarro n.º 7, da Praça Lubianski à Praça Noguine. Os terríveis solavancos farão sobressair admiravelmente o encanto de uma vida diferente. Os solavancos são indispensáveis para a comparação. Vladimir Maiakovski, Como fazer versos . Tradução de Maria Manuela Ferreira.

O máximo de sabor possível

Ao falar sobre a nova etapa de sua trajetória, a “idade de outra experiência, a de desaprender”, [Roland] Barthes escreveu: “Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia : nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”. Texto completo aqui.

Trinta chaves para escrever contos e romances

Como atrair a atenção do leitor? Com números de contorcionismo, acrobacias em cavalos ou bicicletas, pirâmides humanas, voos no trapézio, demonstrações de pirofagia, palhaçadas, lançamento de facas e travessias na corda bamba. Quando há uma história? Quando há uma história. O que nos faz continuar a ler? Livro, sol, uma mesa de esplanada, café, óculos. Que tipo de leitor procuramos? Um leitor. Como construir uma personagem? Construindo uma personagem. Como conceber e planificar uma narrativa? Com papel e esferográfica. Ou lápis. Descrever de mais ou de menos? Descrever mais ou menos. Para que servem os diálogos? Para matar o tempo. Como trabalhar com o quotidiano? Levantar de manhã, tomar o pequeno-almoço, apanhar o autocarro para o trabalho, trabalhar, almoçar, trabalhar, apanhar o autocarro para casa, fazer o jantar, jantar, deitar, dormir. Como evitar os clichés? Saber quem são, onde costumam estar e não frequentar os mesmos locais.

A bookstore in the desert

When I opened up, the police parked across the street on a dirt road. I was wondering what they were doing, and they were wondering what I was doing. They came every day for about two weeks. We found out they thought it was a front, because nobody would open a bookstore in the desert. Daniel Cronkhite.