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Mensagens

Lepisma saccharina

O centro e a periferia

Na literatura, a floresta está por conta dos escritores de língua alemã. (Esta afirmação não é completamente verdadeira, mas também não é completamente falsa.) O problema dos escritores de língua alemã, um dos problemas, melhor dizendo, é o excesso de intensidade (continuamos no limbo das opiniões imprudentes): entram na floresta e querem ir logo para o centro, querem sempre qualquer coisa profunda e geométrica. Holden Caulfield, pelo contrário, não sabe bem o que quer, mas quando decide ir embora, decide ir para o Oeste, fingir que é surdo-mudo e construir uma pequena cabana "mesmo na borda da floresta, mas não na floresta, porque queria ter sempre o máximo de sol". A floresta sombria nas costas, o sol de frente — ou vice-versa. O plano é inteiramente perfeito e até necessário, mas chegar a esse sítio é mais difícil do que chegar ao coração da floresta. A verdade é que Salinger pirou-se e Holden foi parar a um sanatório. Cristina Fernandes.

Pergunta e resposta

A pergunta surge logo no início e volta de tempos a tempos: para onde vão os patos do Central Park no inverno? Ninguém dentro do livro sabe responder a Holden. Aliás, ninguém quer saber para onde vão os patos. No entanto, é uma questão importante, a sério. Fiz uma pesquisa e descobri que os patos ficam no mesmo sítio. Se o lago congelasse por completo teriam de ir para o sul, mas geralmente há uma brecha que lhes permite mergulhar e alimentarem-se das plantas subaquáticas — e isso basta. Sul Salinger sabia a resposta, antes até de Holden pensar nos patos. Essa é uma das qualidades de "À espera no centeio": Salinger e Holden sabem coisas diferentes, logo a profundidade de campo aumenta. Holden é o narrador; Salinger trabalha nos interstícios, em contramão. Jean Renoir dizia: "Por que raio é que, numa cena de amor em que o actor diz à actriz je t'aime a música também há-de dizer je t'aime ? Porque é que a música não diz estou-me nas tintas para ti?" Ora, S

Os nomes

SCHWARZ     Mas quem? SCHÖN     Mas quem? - A tua mulher. SCHWARZ     A Eva? SCHÖN     Mignon foi o nome que lhe dei. SCHWARZ     Pensei que se chamasse Nelli. SCHÖN     Esse era o nome que o Dr. Goll lhe dava. SCHWARZ     Eu chamava-lhe Eva... SCHÖN     O verdadeiro nome dela, não sei. SCHWARZ (distraído)     Talvez ela saiba. Frank Wedekind, Lulu - Espírito da Terra . Tradução de Aires Graça. O cão tinha um nome por que o chamávamos e por que respondia, mas qual seria o seu nome só o cão obscuramente sabia. (...) Manuel António Pina, O nome do cão.

Sexta-feira, 13

Está tudo a acontecer

António da Silva Oliveira pertence à última geração de autores-editores-criadores cujo trabalho pode ser relacionado com a vida e o ambiente dos cafés do Porto. Após os anos dourados da segunda metade do século XIX e primeira do século XX, as décadas de 70, 80 e 90 são as últimas em que os cafés funcionam como palco principal onde se montam projectos, cruzam ideias, juntam recursos e combinam edições. É ainda nos cafés que se escreve, trocam manuscritos, vendem fanzines e revistas. A esta geração coube o difícil papel de fazer a passagem entre os cafés e as redes sociais (incluo aqui os blogues). Os dois mundos conviveram durante pouco tempo. A passagem foi rápida e, para muitos criadores, impossível de acompanhar. A lógica de trabalho da rua, das gráficas e do papel, não é traduzível online. Os próprios códigos e o tipo de linguagem (especialmente literária) não funcionam, em grande medida, na internet. Por isso, o esforço de adaptação daqueles que cresceram nos cafés nem sempre tem

Sábado, 7 de Janeiro, na Sede

Ainda agora começou e já foi há tanto tempo

Em meados dos anos 80, o Porto era uma cidade cercada. Não pelo exterior, mas a partir de dentro. A sensação era a de que se vivia afastado de tudo o que de importante estava a acontecer no mundo. O que chegava de fora não era suficiente para aplacar a nossa fome. A rádio, a televisão e os jornais, que para os padrões de hoje pareceriam radicalmente alternativos, representavam o tipo de cultura e informação que era necessário rejeitar. Dentro de muros, a resistência, como sempre, fazia o seu obscuro caminho. Fanzines, plaquetes e boletins, circulavam de mão em mão, nos cafés, nas lojas de discos, nas associações de estudantes e colectividades, numa espécie de samizdat legal. Desenhadas à mão, escritas à máquina, reproduzidas em lojas de fotocópias, em formato A4 ou A5, com mais ou menos páginas, quase sempre a preto-e-branco, as publicações alternativas da época seguiam a estética mais simples do DIY. Edições sobre música, cinema, literatura, filosofia, política e outros temas impos

Um berlinde azul sem defeitos

Quando estava a ler a carta que Buddy Glass escreveu a Zooey, passaram-me tantas coisas pela cabeça e tão depressa que só dificilmente consegui agarrar duas ideias e um título. 1. A ligação das crianças Glass ao Ernesto do filme Les Enfants , de Marguerite Duras. Em termos literários não podiam estar mais afastados: a língua, a entoação das palavras, o ritmo dos corpos (vejo sempre as crianças Glass a fazer acrobacias, e Ernesto e a irmã encostados a uma parede ou a uma janela), os próprios gestos. E, no entanto, passaram pela mesma experiência. Não quero nem posso descrever essa experiência, porque qualquer tentativa seria apenas uma caricatura. Tomo o partido de Tatiana Moukhine quando diz que compreende o filho em silêncio. Imagino-a até, por encadeamento de imagens, naquele filme de Rivette, na roulote, no jardim, a dizer isso. (Ah, se a conhecesse, aposto que Seymour escreveria um haiku triplo martini em russo.) 2. A impossibilidade de dar a palavra directa a Seymour. É por i

Uma coisa curiosa

«Agora começo a compreender o elevado número de espectadores que gosta de ir gratuitamente ao teatro, e isto em Moscovo», pensava comigo. «E torna-se uma coisa curiosa: ninguém pede para andar de graça no comboio. Nenhuma dessas pessoas vai à loja e pede que lhe ofereçam, por exemplo, um quilo de sardinhas. Então, porque é que no teatro não se deve também pagar?» Mikail Bulgakov, Romance teatral . Tradução de Serafim Ferreira.

FLOP

Chegou a editora Flop A Flop é um projecto de Adriana Oliveira, Carolina Lapa, Tamina Šop, Luis Nobre e meu. O volume inaugural é uma antologia de contos de Daniil Kharms (ou Harms, depende das versões), intitulado "Três horas esquerdas", com tradução e apresentação de Júlio Henriques, e que serviu de base a uma encenação com o mesmo título da companhia Marionet , realizada em 2001. Para efectuar a pré-compra de "Três horas esquerdas", de Daniil Kharms, basta fazer uma transferência bancária no valor de 6€ para o NIB 0043 0001 0400 1032 3455 9 (Rui Manuel Portela Amaral) e enviar um e-mail para floplivros@gmail.com com o comprovativo de transferência. Todos os leitores que participarem na campanha de pré-compra serão co-editores da obra e o seu nome (ou o nome que indicarem) constará na lista de co-editores. Mais informações sobre o nosso primeiro livro e a editora Flop aqui  e também aqui : A publicação de "Três horas esquerdas", de Daniil Kha

Conhecer um bom dióspiro

Decidi reler os livros de Salinger. Ignorei a ordem cronológica e comecei pelo fim (quase fim , para ser exacta): uma edição antiga da Quetzal de "Carpinteiros, Levantai Alto o Pau de Fileira" (1955) e "Seymour (Uma Introdução)" (1959). Apesar da má tradução de Bertha Mendes, "Carpinteiros, Levantai Alto o Pau de Fileira" continua a ser um divertimento maravilhoso; parece uma peça musical de Satie com guarda-chuva aberto para dia de sol e chuva. A viagem de táxi que Buddy partilha com quatro convidados do casamento malogrado de Seymour tem um acentuado efeito ora excitante, ora calmante, e o tio do pai de Muriel surdo-mudo é uma personagem menor enorme. Mas a surpresa foi o segundo texto; já não me lembrava da trama (percebe-se porquê) e na altura não me dei conta da estrutura, melhor dizendo, da formidável falha da estrutura. Buddy Glass tem quarenta anos, é escritor e professor, vive bem no interior do bosque e na parte mais inacessível da montanh
Sábado, 17 de Dezembro, a  ªSede recebe a Livraria Snob para o Natal dos Intelectuais . Uma venda de livros com desconto, seleccionados por Duarte Pereira, o livreiro mais criterioso da Península Ibérica. Contamos com todos na Rua de Santa Catarina, 787, no Porto, ou em:  Site | Facebook.

Notas sobre "Lançamento": Partilhas e Heranças

Margarida Vale de Gato move-se essencialmente no interior de formas canónicas. Há um tom, uma temperatura, uma música, que remetem para a poesia “clássica”, digamos assim. O desvio, a subversão, a ruptura com o cânone, faz-se por dentro dos poemas, pela costura. Quer dizer, não se ostenta, não se mostra, não há fogo-de-artíficio, nem espectáculo de luz e som, não se agita nenhuma bandeira novíssima para rejeitar a tradição e a herança. De resto, há um enorme prazer no trabalho meticuloso em torno da palavra e da forma, que não me parece muito comum nos poetas da sua geração (o primeiro nome que me ocorre é o de Rui Lage). “Edgardo” é um soneto que convoca imagens de “O Corvo”, de Edgar (Edgardo) Allan Poe, autor que MVG  traduziu e estudou. “Estudando a coisa árida penso ora/ por que não um soneto panegírico.” Mas é um soneto que não respeita todas as regras e que recorre, também neste caso, ao humor e à sátira: “E o corvo que grasnava deixa lá/ já nem o vês passou está só ali.” E é

Notas sobre "Lançamento": Sufocação

O morto mais célebre de “ Lançamento” é Portugal. O país vai desaparecendo em vários poemas, numa longa morte lenta, e em “Jaime e José” é já um “corpo exangue caolho”. No poema, Portugal é um peixe, um bicho escorregadio, que se evadiu do mapa, abandonou a água, “respira com dificuldade” em terra, debaixo de um sol abrasador. “O que havemos de fazer com este peixe?” Em certos momentos, porém, pela força de fenómenos pouco óbvios, “o país é mais que peixe”: “quando se juntam pessoas há sempre alguma coisa acontece”. Será suficiente para conseguirmos recuperar o fôlego e voltarmos a ter pé? "Lançamento", de Margarida Vale de Gato, será apresentado na Sede, sábado, 10 de Dezembro, pelas 17h00.

Sábado, 10 de Dezembro, na Sede

Sábado, 10 de Dezembro, a partir das 17h00,  ªSede recebe Margarida Vale de Gato para o lançamento de "Lançamento" , o magnífico e mais recente livro da autora, editado pela  Douda Correria . Ao longo da tarde, haverá ainda a apresentação de "Tâmaras" , de João-Paulo Esteves da Silva, e de "Clube dos Haxixins" , de Nuno Moura, também do catálogo da Douda Correria. Contamos com todos na Rua de Santa Catarina, 787, no Porto, ou em:  Site | Facebook.

Notas sobre "Lançamento": tristes cenas e duques e bobos

Podia prosseguir a leitura de “Lançamento” dobrado, ainda e outra vez, sobre o tópico da morte. Outro poema: “Mário.” Aqui a morte é de outra substância. É a da passagem do tempo e da impossibilidade de mudar o passado: “Por todas as minhas desintegridades/ me desculpem os Mários (…) peço só/ que me possam perdoar amigos que não defendi.” Os nossos erros, as nossas falhas, as nossas “desintegridades”, acumulam-se na memória como um saco cheio de pregos. Dizia eu que podia prosseguir por este caminho, mas, neste caso, prefiro sublinhar o humor de Margarida Vale de Gato. Um humor fino e elegante, carregado de auto-ironia, que faz sorrir por dentro. “Mário” é mais um poema que, como um espelho, reflecte a imagem do próprio leitor (“somos o livro do livro que lemos”). Num qualquer ponto da vida, fomos talvez um Mário e o autor deste poema: (...) Mas no final o Mário Viegas tornou a si do carácter e à boca de cena como Balzac acusou a atitude da espectadora que à entrada displicente c

Notas sobre "Lançamento": Nomes

As páginas de “Lançamento” não estão numeradas. A ausência de numeração abre um espaço vazio na página, que provoca uma leve sensação de vertigem, de perda de pé. Formalmente, o livro não tem princípio, meio ou fim. O leitor concentra então toda a atenção nos títulos dos poemas; é uma questão de intuição, de manobra involuntária para não perder o equilíbrio. Cada título corresponde a um nome próprio: Alice, Luís, Paulo, Mário, etc. O nome ganha uma importância invulgar, o leitor apoia-se desesperadamente nele. Em princípio, trata-se de uma ilusão. Um nome próprio é apenas isso, sem mais pistas. O truque, porém, funciona: não há nada mais humano, mais pessoal e íntimo do que um nome. O leitor é forçado a usar a imaginação para construir um contexto para o nome, uma textura, um corpo - pele, veias, músculos, órgãos -, uma memória e as respectivas cicatrizes. O leitor escreve o poema. As palavras são aquelas, as ideias são aquelas. Agora, somos aquele nome e aquele texto. Ac

Notas sobre "Lançamento": Queda

O primeiro livro de Margarida Vale de Gato intitulava-se “Mulher ao mar” . Este segundo chama-se “Lançamento” . É quase impossível não estabelecer uma relação directa entre os títulos. Ambos remetem para a ideia de salto e queda. E se “Lançamento” foi precipitado “porque alguém que era próximo morreu”, como escreve a autora na “introdução”, “Mulher ao mar” funciona como uma espécie de assombroso prenúncio. Um secreto mise en abyme . Ou não. É fácil ver a morte para onde quer que olhemos. *** A queda bíblica pertence ao Homem e a Lúcifer. Há um poema em “Satanás Diz” , de Sharon Olds, traduzido por Margarida Vale de Gato e intitulado “Teme-se que se tenha afogado”, que insiste em introduzir-se na minha leitura de “Lançamento”. Eis o poema de Olds: TEME-SE QUE SE TENHA AFOGADO De repente ninguém sabe onde estás, o teu fato negro como algas, o teu rosto barbudo escorregadio como foca. Alguém olha pelas crianças. Avanço até à fímbria da água, agarrando-me à toalha como u