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Pergunta e resposta

A pergunta surge logo no início e volta de tempos a tempos: para onde vão os patos do Central Park no inverno? Ninguém dentro do livro sabe responder a Holden. Aliás, ninguém quer saber para onde vão os patos. No entanto, é uma questão importante, a sério. Fiz uma pesquisa e descobri que os patos ficam no mesmo sítio. Se o lago congelasse por completo teriam de ir para o sul, mas geralmente há uma brecha que lhes permite mergulhar e alimentarem-se das plantas subaquáticas — e isso basta.

Sul
Salinger sabia a resposta, antes até de Holden pensar nos patos. Essa é uma das qualidades de "À espera no centeio": Salinger e Holden sabem coisas diferentes, logo a profundidade de campo aumenta. Holden é o narrador; Salinger trabalha nos interstícios, em contramão. Jean Renoir dizia: "Por que raio é que, numa cena de amor em que o actor diz à actriz je t'aime a música também há-de dizer je t'aime? Porque é que a música não diz estou-me nas tintas para ti?" Ora, Salinger introduz essa música com muita subtileza. Holden não é apenas aquilo que diz, Salinger mostra muitas vezes (nas hesitações, nos exageros, no armanço), o oposto. Holden gosta e não gosta dos amigos, mas tem dificuldade em perceber e conciliar essa variedade de sentimentos; acha que isso põe em risco a sua integridade e o amolece. A adolescência é assim mesmo, vivemos imersos numa maravilhosa petulância e, acima de tudo, não queremos ser uns merdosos e detestamos visceralmente os lugares comuns. Então, Holden ou desatina ou refugia-se nas relações inteiras e raras com o irmão morto Alfie e com a "miúda" Phoebe. Enfim, é fácil ser amigo dos mortos, são dóceis e estão à nossa disposição para o que quisermos; e Phoebe é ainda bastante miúda para ser inteiramente estupenda: nunca dá um passo atrás por receio, tão gira, séria, observadora, inteligente (dois exemplos: sabe de cor os diálogos todos de "39 degraus" e de Hamlet só gosta do gesto de Laurence Olivier a acariciar a cabeça de um cão). Os outros, bom, os outros quase nunca estão à altura dos nossos desejos. Há uma inclinação generalizada para tudo descambar. Vai ser sempre assim, o que garante a sobrevivência é a fenda no lago, descobrir a fenda. Ou então ir para o sul. Mas onde fica o sul, o sul que interessa? Ah, isso nem Salinger sabe.

Centeio
Felizmente a tradução de José Lima traz, com justiça, o centeio para o título. A canção que o rapazinho canta é um centro enérgico da história. Holden imagina miúdos a jogar num campo de centeio perto de um abismo e queria estar no centeio e agarrar os miúdos para eles não cairem no abismo — é isso que ele gostava de fazer na vida (uma profissão de fé para um tipo tão fora da fé? Nem mais, por isso é que Salinger lhe deu o nome Holden). Mas não é possivel, o abismo faz parte do jogo. A parte mais intrigante.

Kompliziert-Einfach
Ao contrário das opiniões que li por aí, ao acaso, que falam de simplicidade, "À espera no centeio" é uma história extremamente complexa. É complicado chegar ao vocabulário de Holden, com repetições, calão e muletas (agradecimentos vários a José Lima) sem cair num falatório vazio. É difícil construir uma personagem tão vibrante e frágil como Holden Caulfield sem ser piegas ou irritante (apesar dele pisar o risco muitas vezes). E é necessário afirmar isto contra a tendência actual para estabelecer uma certa facilidade na literatura que não é senão uma tendência para depreciar o ofício da literatura ao mesmo tempo que elevam o valor do produto editorial — truques comerciais.

Digressão
A citação de Renoir serve também o propósito de trazer o cinema à baila. Holden passa a vida a dizer mal do cinema mas, em certas situações, imagina-se dentro de um filme, principalmente num filme negro, com as tripas de fora, a morrer e a fazer-se de durão. Ironia, claro — mas não só. Não preciso de biografias de Salinger para adivinhar os seus gostos; aposto que o tipo curtia os filmes de Hitchcock, principalmente aqueles com um actor armante como o Cary Grant e gajas giras como a Ingrid Bergman.

Cristina Fernandes.

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