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Notas sobre "Lançamento": tristes cenas e duques e bobos

Podia prosseguir a leitura de “Lançamento” dobrado, ainda e outra vez, sobre o tópico da morte. Outro poema: “Mário.” Aqui a morte é de outra substância. É a da passagem do tempo e da impossibilidade de mudar o passado: “Por todas as minhas desintegridades/ me desculpem os Mários (…) peço só/ que me possam perdoar amigos que não defendi.” Os nossos erros, as nossas falhas, as nossas “desintegridades”, acumulam-se na memória como um saco cheio de pregos. Dizia eu que podia prosseguir por este caminho, mas, neste caso, prefiro sublinhar o humor de Margarida Vale de Gato. Um humor fino e elegante, carregado de auto-ironia, que faz sorrir por dentro. “Mário” é mais um poema que, como um espelho, reflecte a imagem do próprio leitor (“somos o livro do livro que lemos”). Num qualquer ponto da vida, fomos talvez um Mário e o autor deste poema:

(...) Mas no final o Mário Viegas tornou a si do carácter
e à boca de cena como Balzac acusou
a atitude da espectadora que à entrada displicente
com um assobio desfalcado e um mal amolado estalo dos dedos
exclamara que era roubo o preço do teatro
quando tanto da vida davam os atores às vezes sob tortura
quando a juventude irreal esbanjava fáceis fortunas.

Eu era a insolente e por mais que me afundasse
não achei no pânico a escotilha na plateia
e enjoei e engoli meio desfeita as têmporas
por todo o esterno empolgado, por instantes só quis
que o Mário Viegas não tivesse existido se não pudesse calar-se
relevar, abençoar, envolver no seu pullover
a minha cabeça rubra à raiz dos cabelos
desmerecida então do mar do teatro de velas e pinturas.

(…)

Anos mais tarde com meu amor num bar que salvo o erro
tinha nome religioso houve um outro Mário mais novo
que também era do teatro. Eu já devia ter parado de beber
e não me agradava a conversa que creio ter sido
ou eu ter entendido acerca de gajas de toda a maneira
eu já não era tão jovem e sofria mais.

E sempre cobarde dirigindo o juízo ao que menos contava
a minha mão voou aberta à bochecha do novo Mário
e ele inchou, senão de dor, de rancor, todo
transfiguração e ultraje, nisso vendo a deixa
para colocar a mais alta voz da representação
no vitupério das minhas maneiras, das minhas peneiras
tristes cenas e duques e bobos todos de madrugada (…).

***

O humor cinzento e a auto-ironia melancólica que perpassa em tantos poemas deste livro – Mário, Miguel, Nuno, etc. – faz-me pensar num outro livro com o qual “Lançamento” partilha um certo universo formal: “Spoon River”, de Edgar Lee Masters. Um grande livro remete para outro e este para um terceiro e assim sucessivamente. É uma maneira de construir bibliotecas.


"Lançamento", de Margarida Vale de Gato, será apresentado na Sede, sábado, 10 de Dezembro, pelas 17h00.

Comentários

c disse…
Gosto muito deste sequência de Notas.