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Mensagens

Da garrafa saem vapores espirituosos

São trinta páginas. Facilmente poderíamos dizer que "Três horas esquerdas" de Daniil Kharms é um livro pequeno, ou até um livrinho. Desenganem-se, o tamanho é um embuste (de Daniil Kharms, sempre; da editora Flop só para começar), e diminutivos não servem à obra. Os textos de Kharms — é assim que o vou nomear por causa do "h" aspirado, dos tormentos, do charme e de Sherlock Holmes (ler explicação na valiosa apresentação feita pelo tradutor Júlio Henriques) — são densos, quimicamente densos, isto é: em cada um dos 14 textos que compõem o livro há muita matéria concentrada. Kharms é perigoso e escreve como quem lança bombas; desde a primeira palavra, tudo aponta para o desastre — um desastre formidável mas também bastante cómico. E desagradável; desagradável é uma propriedade que Kharms usa como se fosse uma écharpe esvoaçando enquanto ele conduz um descapotável vermelho em excesso de velocidade (é curioso como estas histórias nos deixam impressões visuais tão for

Tartaruga

A porta de casa abriu e dela saiu uma tartaruga. Não exactamente uma tartaruga, como é evidente, mas um velho muito parecido com um desses bichos. – Vou ao mercado comprar pão e leite – disse, avançando sobre as quatro patas, lentas, rotundas e pesadas. Escrevo quatro patas porque, como já disse, havia muito de quelónio no velho. Na realidade, caminhava sobre os dois pés, naturalmente. Mãos nos bolsos para coçar as virilhas, o pescoço todo esticado, a cabeça redonda, os olhinhos miúdos e húmidos, a boca aberta, dois ou três dentes podres, enfim, as papilas gustativas segregando saliva. Muito desejaria ser pintor, um grande pintor, para poder pôr diante dos olhos do leitor as diferentes expressões que todas as partes do seu corpo tomavam ao caminhar. De súbito, mais ou menos a meio do caminho, aconteceu uma coisa singular. Uma coisa realmente singular. Podia escrever que o velho se transformou em lebre. Isso mesmo. De tartaruga em lebre. Podia perfeitamente escrever isso. E que num p

Visões

All fiction writers work by indirection: to show not to tell. Eudora Welty, 1984. É como um exercício de ilusionismo: todos os bons escritores têm um truque. Eudora Welty , que também foi uma excelente fotógrafa, constrói visões espantosas dentro dos olhos do leitor. Visões cheias de cor, textura, pormenor, luz, sombra, mas também, e sobretudo, visões que têm som, cheiro, temperatura, emoções. Visões cheias de vida , mais impressionantes do que fotografias ou filmes, porque é a nossa imaginação que está em movimento. Mais fortes até do que a própria imaginação, porque estão vivas. Uma espécie de outra realidade criada pela ficção. E o leitor mergulha serena e secretamente neste truque assombroso. Nos canteiros de flores saltitavam os piscos do costume. O sistema de rega gotejava agora. Entrámos de novo em casa pela porta das traseiras. As nossas mãos tocaram-se. Pisámos o canteirinho de hortelã-pimenta da Tellie. O gato amarelo esperava para entrar connosco, a maçaneta da porta

Vêm aí os russos

A apresentação do primeiro volume da editora Flop : Três Horas Esquerdas , do vanguardista russo Daniil Kharms, na magnífica tradução de Júlio Henriques, acontece no próximo sábado, 25 de Fevereiro, na  Sede  (Rua de Santa Catarina, 787, no Porto). A tarde começa às 15h00 com caviar e vodka, e às 17h00 há uma leitura pelo actor e performer Nuno Pinto . Contamos com todos.

Sentido de proporção

Acometido pela febre, o jovem Loch Morrison está confinado ao seu quarto. Para passar o tempo, espia a velha casa em frente através de um telescópio. A antiga casa da família MacLain está vazia, mas não abandonada: cruzam-se ali várias histórias, umas criadas pela imaginação de Loch, outras mais reais, como os encontros amorosos entre a adolescente Virgie Rainey e um marinheiro. Na página 33 de As Maçãs Douradas , Eudora Welty faz-nos participar no exercício voyeurístico do rapaz, revelando-nos através da lente do telescópio os transportes secretos dos amantes. A cena é particularmente impressionante pela tensão erótica que Welty consegue criar a partir, uma vez mais , de referências sensoriais e de uma escolha cirúrgica das palavras. Cada palavra encerra uma intenção, cada frase desdobra-se em múltiplos sentidos, símbolos, imagens, planos. E tudo parece simples, claro, transparente. O sentido de proporção de Welty é notável. Loch apontou o telescópio para as traseiras e apanhou o ma

Abarcar tudo num relance

Lendo As Maçãs Douradas , de Eudora Welty (tradução de Diana V. Almeida), alcança-se facilmente o mundo inteiro. Em duas ou três linhas, o leitor tem uma visão plena de um determinado tempo e lugar (uma “visão 360º” ou “surround”, como sói dizer-se hoje em dia). O termo que me ocorre é de uma experiência de “leitura total”. O efeito consegue-se, creio, através de uma fascinante combinação de referências que remetem para os quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Um exemplo retirado da página 31: “Loch podia espreitar através do renque de cedros , onde faltava um, e abarcar tudo num relance – como se lhe pertencesse – desde o alpendre da frente às traseiras, que pareciam um telheiro, e ao gazebo sombrio, que despertava nele um amor completamente diferente, com o seu aroma a folhas negras , que se desfaziam em fuligem , e com a sombra das quatro figueiras , onde ele havia de ir roubar figos , se Julho alguma vez chegasse. E, acima da sombra escura como um barco , faiscava o céu az

Cheirar com os olhos

Outro truque tipicamente weltiano, que contribui para essa sensação de “leitura total” , é a surpreendente combinação de sentidos aparentemente incompatíveis. Um exemplo da página 32 de As Maçãs Douradas : “Com o telescópio colado ao olho [Loch] sentia até o cheiro intenso da casa.” (Sublinhados meus.) Combinando habilmente os cinco sentidos, Eudora Welty inventa novos sentidos. Outra vez: o prodigioso poder da literatura. Eudora Welty é o tema da primeira Acta, a edição exclusiva de ªSede.

Sinopses de filmes

Uma mulher aluga um apartamento a um homem que parece ter a ver com o eclipse solar que se está a passar. Uma aristocrata fugitiva que tenta escapar a funcionários corruptos do governo, junta-se a um pintor sem ambições e a monges budistas cheios de recursos. Uma menina da aldeia vai para a capital cuidar da prima rica que perdeu a vista mas que fala com os mortos. Um jovem compra um BMW por um excelente preço. Descobre depois que está assombrado. Um jovem emocional descobre que é um robot. A história de duas irmãs enquanto a Grã-Bretanha sofre uma invasão extraterrestre. Um jovem mendigo pede esmola à porta de um templo. Recebe um pendente de jade. No local mais triste do mundo, dois estranhos conhecem-se. Mas apenas um deles está feliz por estar ali. Um jovem casal enfrenta um novo desafio numa sociedade pobre em que a vida é já muito difícil. Um traficante e a sua namorada enganam o patrão no seu último trabalho e ficam presos numa volta do tempo. Dois viajantes solitários conhece

Jogo das escondidas

Contar até 10. 1. Há um permanente jogo das escondidas entre Paulo Ansiães Monteiro (PAM, Porto, 1957) e o espectador dos seus trabalhos. Onde começam os textos e acabam os desenhos? Textos e desenhos são a mesma coisa? O que está mais vivo: o papel ou a tinta? E este jogo estende-se a outros níveis, digamos, mais profundos. O espectador transforma-se numa espécie de arqueólogo: uma camada esconde outra camada e esta outra ainda. 2. O trabalho de PAM possui uma urgência e energia muito particulares. Há qualquer força que nos empurra para o tempo mais primitivo da arte, qualquer força profundamente orgânica, profundamente humana. Qualquer força que sublinha a nossa incontrolável necessidade de comunicar, de conferir matéria ao pensamento. 3. Os desenhos parecem vivos, pulsam como se tivessem veias, falam-nos como se tivessem voz. Vibrantes, sinuosos, muitas vezes grotescos, construídos segundo a mesma mecânica que comanda a imaginação, usando talvez a mesma linguagem secreta

Sexta-feira, 3 de Fevereiro, às 22h00, na Sede.

Ibsen, autor de comédia

Percebo tanto de teatro como a maioria das pessoas: nada. É justamente por isso que vou ao teatro. Quero tentar perceber. Não sei se é possível explicar o seu mistério. Suponho que não. Por mais que se arrisquem explicações, o mistério permanece. Por que amamos uma peça e não gostamos de outra? Por que um texto, um actor ou um encenador alimentam a nossa imaginação e outros causam-nos repulsa? A encenação de Tónan Quito de “Um inimigo do povo” , de Henrik Ibsen, levanta uma série de interrogações importantes sobre as múltiplas – devo dizer, infinitas? – leituras que se podem fazer sobre o teatro. A peça é um dos mais famosos dramas de Ibsen: “Um médico, responsável pela garantia da qualidade sanitária de uma estância balnear, que atrai muitos turistas, descobre que as águas estão contaminadas. Decide tornar o facto público, em parte por influência do director do jornal local O Mensageiro do Povo . Acontece que o anúncio de tal calamidade tem consequências que o médico, Dr. Stockmann,

Um permanente desejo de subversão

Há nos personagens de Virgilio Piñera um permanente desejo de subversão. O mundo, ou melhor, a sociedade, estão organizados segundo regras demasiado estreitas e lineares, impossíveis de aceitar (neste ponto, é óbvio que Piñera tem como principal referência o regime castrista de Cuba, de que foi uma das vítimas, mas não só). Ora, os seus personagens refractários desafiam todas as convenções, mas sofrem igualmente todas as consequências. Tal como o leitor, adivinham desde a primeira linha o seu brutal destino, mas há uma força incontrolável que os impele a seguirem em frente e a não se desviarem um milímetro do seu objectivo. Há qualquer coisa neles de profundamente religioso, sacrificial, como se estivessem predestinados a uma espécie de imolação voluntária. É essa impossibilidade consciente de escaparem ao seu "destino" que faz deles personagens cómicos. De um humor raro e trágico. Virgilio Piñera vai estar na ªSede, no Porto, no dia 28 de Janeiro, às 17h00.

Nunca pedes a palavra

É o que admiro em ti: falas pouco, és tão distraído, mas tens um efeito tão forte. Por isso também acho natural que as pessoas comentem: que há ano e meio assumiste o lugar na Câmara Alta, mas nunca pedes a palavra. Está perfeitamente de acordo com um senhor como tu! Um senhor assim fala através da sua personalidade! Pois bem, eu observo-te. Daqui a alguns anos também sou assim. Por agora ainda tenho demasiada paixão. Tu nunca vais direito aos assuntos e não tens propriamente uma retórica, isso é que é elegante em ti. Hugo von Hofmannsthal, O indeciso . Tradução de Ludwig Scheidl.

Natação

Aprendi a nadar em seco. É mais proveitoso do que fazê-lo na água. Não há o medo de afundar, pois já se está no fundo e, pela mesma razão, já se está afogado de antemão. Também se evita que tenham de nos pescar à luz de um farol ou na deslumbrante claridade de um belo dia. Além do mais, a ausência de água evitará que fiquemos inchados. Não posso negar que nadar em seco tem algo de agónico. À primeira vista pensar-se-ia nos estertores da morte. No entanto, há uma diferença: enquanto se agoniza estamos bem vivos, bem alerta, a escutar a música que entra pela janela e a observar a lagarta que se arrasta pelo chão. A princípio os meus amigos criticaram esta decisão. Esquivavam-se aos meus olhares e soluçavam pelos cantos. Felizmente, a crise passou. Agora sabem que me sinto bem a nadar em seco. De vez em quando, mergulho as mãos no chão de mármore e ofereço-lhes um peixinho que apanho nas profundezas submarinas. Virgilio Piñera, O Grande Baro e outras histórias.

Nada

Quando leio certos contos de Virgilio Piñera, a memória convoca também Robert Walser. Há em ambos uma atracção obsessiva pelo nada. As histórias parecem desfazer-se em pó. Os personagens parecem deslizar fatalmente para a desintegração. O que os distingue é uma diferença de grau, conferida talvez pela cor local. Piñera aproxima-se do nada por via do excesso, Walser por defeito. Piñera explode em imagens espantosas e truques formidáveis antes de tudo acabar no mais completo silêncio. Walser não grita, não gesticula, nunca muda de tom ou ritmo. No fim, o silêncio e o vazio são os mesmos: "Sem tempo, sem espaço, sem memória, sem nostalgia" (Piñera, Salão Paraíso ). Virgilio Piñera vai estar na ªSede, no Porto, no dia 28 de Janeiro, às 17h00.

Onde se lê "teatro" pode ler-se "literatura"

O meu teatro (peço desculpa por dizer "o meu teatro") sou eu mesmo, mas teatralizado. Ora, pertenço a uma época da história de Cuba marcada por grandes inseguranças - económica, social, cultural, política. Portanto, não é por acaso que as levo para o palco. O senhor deixou deslizar pela sua pergunta as palavras "absurdo" e "sátira". O ente social inseguro vive a sua insegurança como um absurdo e defende-se dela com a sátira. Entrevista com Virgilio Piñera, revista Conjunto , 1971.

Tudo é literatura

A frase que diz “E o resto é literatura”, faço-a minha, mas modifico-a, dizendo: “Para mim tudo é literatura...” Não adopto com esta declaração uma postura cómoda, como se dissesse: “Pois bem, tive um problema, mas serve-me para escrever uma história; perdi um amigo, mas ganhei um livro.” Isso seria demasiado fácil, demasiado simples e miserável. Virgilio Piñera, Teatro completo , p. 23

Sábado, 28 de Janeiro, 17h00

Messias e rinocerontes

Numa peça de 1948, Virgilio Piñera conta a história de um simples barbeiro de bairro, chamado Jesus , que os vizinhos declaram tratar-se do novo Messias. O pobre barbeiro rejeita tal predicado e nega todos os milagres que lhe atribuem. Os discípulos, porém, transformam cada coincidência (os pais chamam-se Maria e José) e cada palavra de Jesus num motivo de encantamento. Ora, vítima de tão excepcionais e involuntárias circunstâncias, vê-se forçado a enfrentar o fanatismo popular e a proclamar a sua condição de “Não-Jesus”. Desta maneira, nega não apenas a sua condição de Messias, mas também a sua própria identidade, uma vez que efectivamente se chama Jesus. O problema assume proporções inimagináveis: o Vaticano envolve-se no assunto (aconselha-o a não confirmar nem a desmentir a fé do povo na sua suposta natureza divina, Vox populi vox Dei ) e as autoridades públicas exigem-lhe que realize façanhas prodigiosas. Por compaixão, ajuda algumas pessoas que lhe pedem milagres e que, por iss