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1.
Há um permanente jogo das escondidas entre Paulo Ansiães Monteiro (PAM, Porto, 1957) e o espectador dos seus trabalhos. Onde começam os textos e acabam os desenhos? Textos e desenhos são a mesma coisa? O que está mais vivo: o papel ou a tinta? E este jogo estende-se a outros níveis, digamos, mais profundos. O espectador transforma-se numa espécie de arqueólogo: uma camada esconde outra camada e esta outra ainda.
2.
O trabalho de PAM possui uma urgência e energia muito particulares. Há qualquer força que nos empurra para o tempo mais primitivo da arte, qualquer força profundamente orgânica, profundamente humana. Qualquer força que sublinha a nossa incontrolável necessidade de comunicar, de conferir matéria ao pensamento.
3.
Os desenhos parecem vivos, pulsam como se tivessem veias, falam-nos como se tivessem voz. Vibrantes, sinuosos, muitas vezes grotescos, construídos segundo a mesma mecânica que comanda a imaginação, usando talvez a mesma linguagem secreta de certos desenhos de Otto Dix, Mangelos, Basquiat ou Batarda.
4.
Um desenho nunca é apenas um desenho. E, sob a tinta, nunca há apenas um simples papel. PAM usa suportes curiosos, como folhas de jornal, revistas, livros, folhetos, caixas de cartão, sacos de supermercado, boletins de totobola e totoloto.
5.
Os desenhos apropriam-se do suporte mas não apagam o que está por baixo. Um boletim de totoloto – símbolo, por excelência, dos jogos de sorte e azar – transforma-se num poema, num aforismo ou num retrato. Um banal saco de compras converte-se num belíssimo cartaz.
6.
O jogo não pára: o que se esconde por baixo do desenho? O artista faz tábua rasa das imagens e textos originais ou convoca-os para integrarem os novos desenhos? E qual é o grau de importância de cada um deles? Existe uma hierarquia entre esses elementos?
7.
O fascínio dos trabalhos de PAM baseia-se justamente nesse jogo entre o velho e o novo, entre o que permanece por baixo e o que lhe é sobreposto, entre aquilo que se vê e o que está para além da superfície, entre o suporte original e o resultado da sua apropriação artística. Como se cada obra fosse pelo menos duas: a que se esconde sob a tinta e a que é criada pelo artista.
8.
PAM produz livros de forma inteiramente artesanal (veja-se o notável trabalho em torno do projecto “Errata”), compõe cartazes, capas e ilustrações para livros (Objecto Cardíaco, Douda Correria ou Hélastre), desenha discos (Osso Vaidoso, Bruta, Roupa Anterior), realiza performances, etc., etc.
9.
Esta ausência de fronteiras entre as várias dimensões – ou camadas – do seu trabalho é a melhor ilustração da sua obra. Uma espécie de errância permanente entre diferentes mundos, feita de avanços e recuos, de experiências e erros, num movimento contínuo que o autor designa por “Erradia”.
10.
“Erradia” é um termo criado a partir de várias palavras – errância, erro, errado, dia, irradia –, também elas sobrepostas como camadas de tinta num papel usado. Uma palavra esconde outra e esta, por sua vez, esconde a seguinte. E ocultar é a forma mais engenhosa de mostrar.
Folha de sala de "Erradia - Desenho Aberto", de Paulo Ansiães Monteiro.
Inaugura hoje, 3 de Fevereiro, às 22h00, na Sede (Rua de Santa Catarina, 787, Porto).
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