Percebo tanto de teatro como a maioria das pessoas: nada. É justamente por isso que vou ao teatro. Quero tentar perceber. Não sei se é possível explicar o seu mistério. Suponho que não. Por mais que se arrisquem explicações, o mistério permanece. Por que amamos uma peça e não gostamos de outra? Por que um texto, um actor ou um encenador alimentam a nossa imaginação e outros causam-nos repulsa?
A encenação de Tónan Quito de “Um inimigo do povo”, de Henrik Ibsen, levanta uma série de interrogações importantes sobre as múltiplas – devo dizer, infinitas? – leituras que se podem fazer sobre o teatro. A peça é um dos mais famosos dramas de Ibsen: “Um médico, responsável pela garantia da qualidade sanitária de uma estância balnear, que atrai muitos turistas, descobre que as águas estão contaminadas. Decide tornar o facto público, em parte por influência do director do jornal local O Mensageiro do Povo. Acontece que o anúncio de tal calamidade tem consequências que o médico, Dr. Stockmann, não previu. Cabe ao seu irmão, o Intendente (corresponde ao nosso Presidente da Câmara) intervir e a apontar-lhe, com alguma autoridade, o quanto a insistência na defesa dessa causa vai prejudicar a economia local, a várias escalas. O médico e o intendente são irmãos. E as posições quanto à questão são opostas. O primeiro não desiste de lutar para denunciar a situação. O segundo está mais preocupado com o prejuízo financeiro.” (Cláudia Galhós, folha de sala do espectáculo.)
O enredo parece relativamente simples e linear: a clássica oposição entre a verdade e a mentira, o interesse privado e o bem público, a honradez e a corrupção, o bem e o mal. Mas esta simplicidade é obviamente falsa. Ibsen escava muito mais fundo, uma camada após outra, da sociedade ao indivíduo, da superfície da pele ao osso, e ainda mais fundo, até ao que não se vê. E à medida que o texto avança, é difícil perceber de que lado estão a razão e a verdade, se é que existe uma só razão e apenas uma verdade. Não são apenas as águas que estão contaminadas, são as fontes da vida, somos todos nós. O drama que Ibsen monta é o drama de todos os seres humanos e o de todas as sociedades. Ninguém está inteiramente inocente, ninguém é absolutamente impoluto. Não existem homens superiores ou heróis. A peça era tão pertinente em 1882, como é hoje e como seria se tivesse sido escrita e representada há 2500 anos. Numa palavra, trata-se de um clássico.
Ora, a primeira interrogação que o espectáculo de Tónan Quito levanta é a da maneira como se pode representar um clássico. Uma questão tão velha como o teatro, suponho. Neste caso, o que se levou à cena não foi um dos grandes dramas ibsenianos, mas uma comédia. Ao longo de duas horas e meia, Tónan Quito e os actores conseguiram a estranha proeza de pôr uma plateia a contorcer-se de riso. Como se, de repente, mergulhássemos num exercício de puro absurdo, capaz de descobrir no texto de Ibsen um potencial cómico em que ninguém reparara antes. “Um inimigo público”, um dos mais fortes, cruéis e perfeitos dramas da história do teatro, transformou-se num momento de comédia risível, mais divertido do que o melhor sketch de Karl Valentin.
Como se explica isto? A ideia é mostrar que cada personagem, cada “representante” de um grupo social, é uma caricatura de si próprio? Que tudo o que damos por adquirido – a verdade, a moral, o bem público, a política – é uma ilusão e que, por isso, não passamos de uma espécie de palhaços involuntários? Que o papel que desempenhamos foi escrito há muito por um terrível deus ex machina que se diverte à nossa custa? Que ninguém se salva e que, por isso, mais vale rir do que chorar? Que o nosso drama é, afinal, uma infinita comédia? Se essa é a ideia, o tom ligeiramente revisteiro da encenação, goste-se ou não, justifica-se.
Um clássico é, por definição, uma obra que admite múltiplas leituras. No teatro, é um texto que pode ser actualizado vezes sem conta, de acordo com os mais variados contextos e ideias. Admito que possa ter uma concepção demasiado purista e romântica do texto literário, mas não consigo identificar nenhum grande traço humorístico na peça de Ibsen. Gosto muito de autores que subvertem as fronteiras entre géneros, que exploram outras possibilidades, que não se deixam aprisionar por concepções e princípios fechados. Ibsen é um deles. É um autor estranho, indomável, insubmisso. Mas, com franqueza, parece-me difícil ler “Um inimigo do povo” fora do género dramático ou algo muito próximo disso. Não é um sermão moral dirigido às massas por um profeta rabugento, mas também não é uma comédia. Há ironia, sim, há obviamente uma imensa e cruel ironia ao longo de toda a peça, mas não há nada que sugira que o texto deva ser representado com os truques mais simples da comédia.
Será que o público que assiste a esta encenação – e penso sobretudo no espectador que nunca leu ou nunca assistiu a outra leitura cénica da peça – é capaz de intuir o estilo, o tom, a linguagem e a voz de Ibsen? Ou esta questão é ociosa? Não se trata apenas de respeitar o espírito do texto, trata-se também de respeitar uma ideia de teatro. Uma ideia demasiado ingénua? Talvez. Talvez nos estejam a prometer água pura e saúde e, afinal, estejamos a ser envenenados. Talvez não haja salvação.
A encenação de Tónan Quito de “Um inimigo do povo”, de Henrik Ibsen, levanta uma série de interrogações importantes sobre as múltiplas – devo dizer, infinitas? – leituras que se podem fazer sobre o teatro. A peça é um dos mais famosos dramas de Ibsen: “Um médico, responsável pela garantia da qualidade sanitária de uma estância balnear, que atrai muitos turistas, descobre que as águas estão contaminadas. Decide tornar o facto público, em parte por influência do director do jornal local O Mensageiro do Povo. Acontece que o anúncio de tal calamidade tem consequências que o médico, Dr. Stockmann, não previu. Cabe ao seu irmão, o Intendente (corresponde ao nosso Presidente da Câmara) intervir e a apontar-lhe, com alguma autoridade, o quanto a insistência na defesa dessa causa vai prejudicar a economia local, a várias escalas. O médico e o intendente são irmãos. E as posições quanto à questão são opostas. O primeiro não desiste de lutar para denunciar a situação. O segundo está mais preocupado com o prejuízo financeiro.” (Cláudia Galhós, folha de sala do espectáculo.)
O enredo parece relativamente simples e linear: a clássica oposição entre a verdade e a mentira, o interesse privado e o bem público, a honradez e a corrupção, o bem e o mal. Mas esta simplicidade é obviamente falsa. Ibsen escava muito mais fundo, uma camada após outra, da sociedade ao indivíduo, da superfície da pele ao osso, e ainda mais fundo, até ao que não se vê. E à medida que o texto avança, é difícil perceber de que lado estão a razão e a verdade, se é que existe uma só razão e apenas uma verdade. Não são apenas as águas que estão contaminadas, são as fontes da vida, somos todos nós. O drama que Ibsen monta é o drama de todos os seres humanos e o de todas as sociedades. Ninguém está inteiramente inocente, ninguém é absolutamente impoluto. Não existem homens superiores ou heróis. A peça era tão pertinente em 1882, como é hoje e como seria se tivesse sido escrita e representada há 2500 anos. Numa palavra, trata-se de um clássico.
Ora, a primeira interrogação que o espectáculo de Tónan Quito levanta é a da maneira como se pode representar um clássico. Uma questão tão velha como o teatro, suponho. Neste caso, o que se levou à cena não foi um dos grandes dramas ibsenianos, mas uma comédia. Ao longo de duas horas e meia, Tónan Quito e os actores conseguiram a estranha proeza de pôr uma plateia a contorcer-se de riso. Como se, de repente, mergulhássemos num exercício de puro absurdo, capaz de descobrir no texto de Ibsen um potencial cómico em que ninguém reparara antes. “Um inimigo público”, um dos mais fortes, cruéis e perfeitos dramas da história do teatro, transformou-se num momento de comédia risível, mais divertido do que o melhor sketch de Karl Valentin.
Como se explica isto? A ideia é mostrar que cada personagem, cada “representante” de um grupo social, é uma caricatura de si próprio? Que tudo o que damos por adquirido – a verdade, a moral, o bem público, a política – é uma ilusão e que, por isso, não passamos de uma espécie de palhaços involuntários? Que o papel que desempenhamos foi escrito há muito por um terrível deus ex machina que se diverte à nossa custa? Que ninguém se salva e que, por isso, mais vale rir do que chorar? Que o nosso drama é, afinal, uma infinita comédia? Se essa é a ideia, o tom ligeiramente revisteiro da encenação, goste-se ou não, justifica-se.
Um clássico é, por definição, uma obra que admite múltiplas leituras. No teatro, é um texto que pode ser actualizado vezes sem conta, de acordo com os mais variados contextos e ideias. Admito que possa ter uma concepção demasiado purista e romântica do texto literário, mas não consigo identificar nenhum grande traço humorístico na peça de Ibsen. Gosto muito de autores que subvertem as fronteiras entre géneros, que exploram outras possibilidades, que não se deixam aprisionar por concepções e princípios fechados. Ibsen é um deles. É um autor estranho, indomável, insubmisso. Mas, com franqueza, parece-me difícil ler “Um inimigo do povo” fora do género dramático ou algo muito próximo disso. Não é um sermão moral dirigido às massas por um profeta rabugento, mas também não é uma comédia. Há ironia, sim, há obviamente uma imensa e cruel ironia ao longo de toda a peça, mas não há nada que sugira que o texto deva ser representado com os truques mais simples da comédia.
Será que o público que assiste a esta encenação – e penso sobretudo no espectador que nunca leu ou nunca assistiu a outra leitura cénica da peça – é capaz de intuir o estilo, o tom, a linguagem e a voz de Ibsen? Ou esta questão é ociosa? Não se trata apenas de respeitar o espírito do texto, trata-se também de respeitar uma ideia de teatro. Uma ideia demasiado ingénua? Talvez. Talvez nos estejam a prometer água pura e saúde e, afinal, estejamos a ser envenenados. Talvez não haja salvação.
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