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Mensagens

Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante

(...) Brodski criou um modelo inédito de comportamento. Não vivia num estado proletário, mas num mosteiro do seu próprio espírito. Não lutava contra o regime. Simplesmente não dava por ele. E mal sabia da sua existência. A sua falta de conhecimento da vida soviética parecia fingida. Por exemplo, andava convencido de que Dzerjinski estava vivo. E que Komintern era o nome de um grupo musical. Não reconhecia os membros do Politburo do Comité Central. Quando, na fachada do seu prédio, afixaram um retrato de seis metros de Mjavanadze, Brodski disse: — Quem é este? Faz lembrar William Blake... O comportamento de Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante. E foi desterrado para a região de Arkhangelsk. O poder soviético é uma dama melindrosa. Quem a ofende, sofre. E é pior ainda para quem a ignora... Serguei Dovlatov, O Ofício. ANTÍGONA. Outubro 2018. Páginas 42 e 43.

Como roubar bancos sem violência

Esta manhã, comprei na Vandoma por 50 cêntimos um livro dedicado ao «Samizdat» de teor político durante o período pós-estalinista. Trata-se de uma edição da Futura , de 1975, com selecção de textos, introdução e prefácio de George Saunders (não é o mesmo George Saunders ). Mas não é isto que me faz escrever. No final do volume, o editor inclui uma lista com outros títulos da mesma colecção (Meridianos Futura) e há um que inevitavelmente atrai a atenção de qualquer pobretanas como eu: «Como roubar bancos sem violência», de Roderic Knowles. Custava 90$00, em 1975, e foi, com certeza, livro de cabeceira de vários banqueiros portugueses. Eis um daqueles livros que não aparece nas feiras ou alfarrabistas. Deve ser mais difícil de encontrar do que uma primeira edição de «Os Lusíadas».

Fúria

O que mais impressiona numa obra como Fúria , de Lia Rodrigues (ou Bacantes , de Marlene Monteiro Freitas), é a distância que se abre entre o palco e a plateia. É um imenso abismo. Que força diabólica nos prende à cadeira e nos impede de nos juntarmos aos bailarinos? Que força intolerável nos impede de levantar e exigir também a natureza, o nosso corpo e alma de volta? Que pudor é este, que educação é esta, que nos força a assistir, sentados, confortáveis, bem-comportados, ao que se passa no palco do mundo? Um dia após outro, sem nos mexermos, sem abrirmos a boca. O que nos impede de saltar para o palco e participar do mundo? O que que nos prende à cadeira? Esta nossa incapacidade de derrubar o muro entre a magia e a civilização de plástico em que vivemos (Artaud, outra vez) é a verdadeira violência denunciada por este espectáculo. Não participar, não erguer a voz, não saltar para a roda, e aceitar sem luta este mundo que nos propõem, é a maior das violências. Levantar o traseiro no f

A mais alta sabedoria

Uma vez, pediram ao mestre zen Ikkyu para escrever algo que reunisse a mais alta sabedoria. O mestre limitou-se a escrever uma palavra: Atenção . O visitante não ficou satisfeito. Só isso? Então, Ikkyu fez-lhe a vontade. Desta feita, escreveu duas palavras. Atenção. Atenção.  Li esta história no “Departamento de Especulações” de Jenny Offill. Estava a contá-la como anedota e quando tentei explicar o que me atrai nestas histórias curtas, de fim insatisfatório e extremamente  cómico, disse sem pensar: — Gosto destas histórias porque os mestres zen são um bocado estúpidos.  Fiquei surpreendida com a afirmação, mas depois de avaliar a palavra “estúpidos” percebi que é mesmo isso que quero dizer.

A classe operária vai ao paraíso

O sorbetto de ananás dos Açores e manjericão da gelataria Portuense (rua do Bonjardim) é o sabor mais próximo do  paraíso  que já provei.

Cada editor floresce numa determinada época

Já reparou que cada editor floresce apenas numa determinada época? As oficinas Frobenius e Froschauer na Idade Média; a editora Cotta com a ascensão da burguesia; os mestres Cassirer no dulci jubilo do período anterior à guerra; Sami Fischer numa Alemanha jovem, que se liberta do poder imperial; o aventuroso Ernst Rowohlt no casino do pós-guerra. Cada um tem a atmosfera de que precisa para desenvolver a sua actividade e ficar rico. Robert Walser, citado por Carl Seelig. Que editor floresce na época do facebook, do instagram e das mil redes sociais? Não estou certo de que a resposta esteja nas grandes editoras, que ainda funcionam segundo a lógica comercial tradicional. Talvez os casos mais bem sucedidos sejam, à sua escala, as “editoras” que alimentam em nós a ideia de que todos somos poetas e romancistas, de que todos temos uma palavra a dizer, de que editar um livro é tão simples e “natural” como publicar uma selfie no instagram. Em Portugal, mais do que a Porto Editora ou a Ley
— Quem o inspira? Quais são os seus escritores favoritos? — Gosto mesmo muito dos escritores russos, especialmente do século 19 e início do século 20: Gógol, Tolstoi, Tchékhov, Babel. Adoro o modo como eles agarram os grandes temas. Também me sinto inspirado por uma certa tradição de cómico absurdo que incluiu influências como Mark Twain, Daniil Kharms, Groucho Marx, Monty Python, Steve Martin, Jack Handey, etc. E ainda, acima de tudo, adoro a tensão da ficção americana minimalista: Sherwood Anderson, Ernest Hemingway, Raymond Carver e Tobias Wolff. Isto foi o que George Saunders respondeu (respigado do arquivo da internet ). Aceito todos os nomes; as influências são uma espécie de cauda de pavão mas também podem funcionar como andaimes de construção — nada a opor. Talvez acrescentar. Agora que cheguei ao fim de "Guerracivilândia em Mau Declínio", apercebi-me de uma grande influência no estilo de Sauders. Talvez não seja assim tão grande; nem sequer influência porque

Tudo a pé, naturalmente.

Certa vez, parti de Berna às duas da manhã em direcção a Thun, aonde cheguei às seis da manhã. De tarde estive no Niesen, onde devorei, regalado, um bocado de pão e uma lata de sardinhas. À noite estava de novo em Thun e à meia-noite em Berna; tudo a pé, naturalmente. Noutra ocasião, caminhei de Berna a Genebra, passei lá a noite e regressei. Um dos meus primeiros relatos de viagem foi sobre o Greifensee, publicado por Josef Viktor Widmann no Bund . Já na altura me pareceu dificílimo fazer a descrição de uma viagem. Robert Walser citado por Carl Seelig, em Caminhadas com Robert Walser . Tradução de Bernardo Ferro.

Mas agora a sério: Saunders não é um gajo infeliz.

Geralmente deixo as notas, prefácios e esse género de informações adicionais para o fim, gosto de saber do que falam para concordar, divergir ou ignorar — e como é que posso saber isso antes de ler os contos, o romance ou o que seja? Bom, costuma ser assim mas na “Guerracivilândia em Mau Declínio” baldei-me para a regra. É o meu terceiro livro de contos de Saunders, já deixei crescer um intenso afecto pelo autor, por isso fui direita às notas das últimas páginas sobre as circunstâncias em que o livro foi escrito (segmento: o escritor é o escritor e as suas circunstâncias). Como é habitual nos contos, também aqui: é tudo divertido e sórdido, Saunders revela uma extraordinária capacidade de desenrolar frases vulgares (um maná para os tradutores) sobre cenários complexos, as personagens passam a vida a tropeçar e a elevar-se, as situações complicadas tendem a complicar-se ainda mais antes de estourarem de modo suave. “Subitamente, senti-me como se estivesse a levar um enxerto de porr

Tripla descrição literária

Na universidade começara a desconfiar de embelezamentos literários convencionais, cansado, por exemplo, daquilo a que eu chamava tripla descrição literata : “Todd sentou-se à mesa preta, a superfície de ébano, a escura portadora de vários copos e pratos, cujas presenças alvas, circulares, em forma de disco, troçavam da sua futilidade, da sua impotência, da sua incapacidade para agir.” Porra, achava eu, que tal dizeres apenas: “O Todd sentou-se à mesa.” Ou melhor, corta essa parte também. Porque é que precisamos de saber que o Todd se sentou à mesa? Avisem-me só quando o Todd fizer alguma coisa. E é bom que não seja “erguer uma chávena até aos seus lábios”, nem “pausar pensativamente para deixar que a percepção de Randy o iluminasse por completo”. Na altura andava um bocado carrancudo, em termos de prosa. George Saunders, na Nota de Autor de “Guerracivilândia em Mau Declínio” .  Tradução de Rogério Casanova para a Antígona. Janeiro de 2019. Páginas 207 e 208.

Trinitarianismo literário

Sempre tinha adorado Hemingway e passei grande parte do tempo na universidade a fazer imitações de Hemingway. Quando me cansava, fazia uma imitação de Babel. Às vezes imitava Babel, supondo que Babel tivesse vivido no Texas. Às vezes imitava Carver, supondo que Carver tivesse trabalhado (como eu) nos campos petrolíferos de Sumatra. Às vezes imitava Hemingway, supondo que Hemingway tivesse vivido em Syracuse, o que acabava sempre por me soar a Carver. George Saunders, na Nota de Autor de  “Guerracivilândia em Mau Declínio” .  Tradução de Rogério Casanova para a Antígona. Janeiro de 2019. Páginas 201 e 202.

Gramática gerativa

Na sua forma plural, "impossível" transforma-se em "máximos esforços". O acto gramatical engendra uma hipótese curiosa: talvez a solução para os nossos problemas seja um sinal de multiplicação. Caminho aberto para um novo tipo de pensadores conflituosos.  En garde !

Realidade aumentada

A primeira vez que lavei os ouvidos e entrei num café logo a seguir, ouvi um barulho intenso de talheres, vidro, vapor, o som seco do manípulo da máquina de café — é mais ou menos isso que sinto quando leio os contos de George Saunders.

Análise da materialidade

As musas dos tempos modernos são silenciosas e não prendem ninguém com feitiços — não valem um chavo. Só os tolos se interessam por elas. Os literatos ensaiam discursos em frente ao espelho. É preciso acender a luz para o salão brilhar.

O horror!

Se de repente uma mão invisível desligasse as televisões e aparelhagens de som de todos os cafés, esplanadas, restaurantes, lojas, salas de espera, repartições públicas, casas, apartamentos, T1, T2, T3 Duplex, e voltássemos a escutar apenas o som da nossa voz, não nos reconheceríamos. O vazio, o silêncio, o perfil sem fotografia, a conta sem actualizações, a folha em branco, é como uma espécie de morte em vida. O horror! O horror!

Sapos & homens

O Princípio da Singeleza não se aplica a Bufo & Spallanzani. Neste romance tudo é fim, aparato e fausto. O ritmo rápido e engatilhado das sequências é uma pista falsa. Aliás, creio que Guedes, o tira, só existe com aquelas qualidades tão planas para contrastar com o multiforme Gustavo Flávio (em francês, Gustave Flaubert). Narrador e narração são exuberantes, no sentido dos pássaros que ganham cores e dimensões exageradas para as suas conquistas sexuais (ver Ronald Fisher). A questão do género policial também é um artifício, o homicídio de Delfina Delamare (em francês, Delphine Delamare) não passa de um macguffin. Conclusão: Bufo & Spallanzani não é bem um livro, mas uma aula de literatura — convém chegar prevenido. Só recebe quem dá. ——— “É apenas uma história de sapos & homens. Nada a ver com a simbologia de Of mice and men . Na orelha do livro o editor dirá alguma coisa para ilustrar e motivar o leitor. Na França, pois o livro será editado em outros países, como te

Princípio da Singeleza (ver Guedes)

Como se aproximam semanas com feriados, trouxe três livros. E como estava a cair uma chuva miudinha, não fria mas desagradável, escolhi escritores brasileiros: dois do Rubem Fonseca e um do Bernardo Carvalho. Uma das coisas que gosto nos livros emprestados é das marcas. Há livros que estão impecáveis, porque ninguém lhes pega. Outros desfazem-se. E muitos têm sublinhados, geralmente a lápis — deve ser a correspondência gráfica do falar baixinho das bibliotecas. Tive sorte, saíram-me: um sublinhado com anotações; um sublinhado com dedicatória (os do Rubem Fonseca que se presta mais a conversa e carinhos vários). Mesmo os livros mais fraquinhos de Rubem Fonseca (“Mandrake — A Bíblia e a Bengala” é bastante fraco; “Bufo & Spallanzani”, apesar do belo título que apetece dizer em voz alta e modulada, ainda está em apreciação) são sempre divertidos e muito instrutivos (gosto tanto quando ele se desvia da história e resolve escrever texto de almanaque sobre sapos, facas ou o que seja)

Observações avulsas sobre a boavista #1

Sempre pensei na Avenida da Boavista como uma unidade, um caminho para chegar à Foz. Mas agora que percorro a pé, de segunda a sexta, mais de metade da sua extensão, apercebo-me das singularidades quase quarteirão a quarteirão. Até os pássaros são diferentes. Junto a Agramonte há andorinhas urbanas; fazem ninhos nos buracos das empenas forradas com placas de fibrocimento onduladas — mais um mês e chegam. Entre o Bessa e o Foco, naquele parque de estacionamento mal amanhado em frente à Farfetch, pegas rabudas. Na Fonte da Moura, já muito perto do parque da cidade, periquitos-de-colar e também corujas de plástico.

Hã? A eternidade.

Com a idade o mundo exterior começa a diminuir. Parece que tudo se torna mais pequeno, menos importante. Em sentido contrário, um outro mundo não pára de crescer dentro de nós, sem barreiras temporais, o passado completamente enredado no futuro. Tão diferente da cena final do 2001 — nem simetria, nem obras de arte, nem monólito. É mais como um campo de ervas daninhas para onde se atira um cadáver.