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Tripla descrição literária

Na universidade começara a desconfiar de embelezamentos literários convencionais, cansado, por exemplo, daquilo a que eu chamava tripla descrição literata: “Todd sentou-se à mesa preta, a superfície de ébano, a escura portadora de vários copos e pratos, cujas presenças alvas, circulares, em forma de disco, troçavam da sua futilidade, da sua impotência, da sua incapacidade para agir.”
Porra, achava eu, que tal dizeres apenas: “O Todd sentou-se à mesa.”
Ou melhor, corta essa parte também. Porque é que precisamos de saber que o Todd se sentou à mesa? Avisem-me só quando o Todd fizer alguma coisa. E é bom que não seja “erguer uma chávena até aos seus lábios”, nem “pausar pensativamente para deixar que a percepção de Randy o iluminasse por completo”.
Na altura andava um bocado carrancudo, em termos de prosa.

George Saunders, na Nota de Autor de “Guerracivilândia em Mau Declínio”
Tradução de Rogério Casanova para a Antígona. Janeiro de 2019. Páginas 207 e 208.

Comentários

c disse…
Não vou defender o Knausgård porque não li nenhum dos seus livros. Mas atenção, o que Saunders escreve não é uma regra universal.

No caso de Saunders (só li os contos traduzidos) a concisão é essencial e é por isso que ele dá este exemplo merdoso do Todd.

Mas há imensos escritores que não são concisos, que se perdem em narrações cheias de pormenores, que se enredam em repetições maníacas, e vão ainda mais longe que Saunders.
Emanuel Madalena disse…
Claro que sim, concordo.
Mas lembrei-me logo do Knausgård porque, embora não use a "tripla descrição" (nem nada de literato, aliás), me fez ficar bastante carrancudo com narrações ainda menos necessárias do que o Todd a sentar-se à mesa. Por isso só li A Morte do Pai, em que o autor enche dezenas de páginas com a narração e descrição minuciosa de limpezas, compras, café ao lume, acendimento de cigarros, duches...

Abrindo o livro ao calhas:
"Fui à cozinha e enchi um balde com água quente, verti algum detergente, peguei num pano e dirigi-me à sala de estar..." (vários parágrafos)
"Yngve abriu a mala e pegámos no máximo de sacos que podíamos carregar e apanhámos o elevador para o supermercado no rés-do-chão. Decidíramos que não valia a pena tentar obter o reembolso do depósito das garrafas de bebidas brancas..."
"Enchi o balde com água, peguei numa garrafa de Klorin, numa de desinfectante e numa de Jif creme e comecei pelos corrimões..." (esta ocupa uma página)
"Depois de pôr a última garrafa e receber um recibo, fui ter com Yngve, que estava na secção de detergentes. Levámos Jif para o quarto de banho, Jif para a cozinha, Ajax para todas as superfícies, Ajax limpa-vidros, desinfectante sanitário Klorin, Mr Muscle para manchas muito difíceis, um detergente de forno, um produto químico especial para sofás, esfregão de palha-d'aço, esponjas..." (a lista de compras continua por mais 5 linhas)
"Fui até à entrada, olhei para o quarto, para a enorme cama por fazer, atrás dela a porta da casa de banho. Poderia fazer isso, pensei, tomar um duche, boa ideia, no fim de contas teria de partir em breve. Despi-me, pus a água a correr, bem quente, sobre a cabeça, deslizando pelo corpo abaixo..."

Não quero dizer nada com isto, nem poderia, porque só isto não quer dizer nada, mas acho divertido (na altura, quando li, não achei).
c disse…
É uma boa lista de detergentes, se calhar até serve de desculpa, "hum, não me está nada a apetecer lavar o quarto de banho, acho que em vez disso vou ler umas páginas do Knausgård" :D

A Biblioteca Almeida Garrett tem "A minha luta" e as três estações disponíveis, qualquer dia encho-me de coragem e trago.
Nunca li o Saunders nem o Knausgård, mas gosto muito de escritores que enchem páginas com pormenores aparentemente (ou efectivamente) sem importância. Na verdade, gosto de escritores que não têm sequer uma história para contar e que disfarçam com descrições de coisas "irrelevantes". Penso no Laurence Sterne, o mestre dos mestres. Ou, lá está, no Raymond Carver, para dar um exemplo mais próximo. O que me atrai nestes escritores é uma espécie de curiosidade mórbida: ver até que ponto o gajo consegue avançar sobre a corda bamba sem cair ao comprido e se esborrachar, até onde o gajo consegue aguentar o truque de ilusionismo e manter o leitor interessado numa história que, muitas vezes, nem sequer existe. E a parte ainda mais fascinante: não existindo nada "palpável" no texto, o leitor começa a ver fantasmas. Coisas que não estão no texto, mas podiam estar. O leitor transforma-se no escritor de si mesmo.
Não sei se me expliquei bem...
c disse…
Explicaste.

E começar a ver fantasmas é sempre bom :)

Olha lá, Rui, tu deves saber isto: o Alberto Pimenta não tem um texto que é uma descrição de uma montra de uma loja?
Não conheço esse texto, Cristina.
c disse…
Acho que li uma referência a um texto que é uma descrição minuciosa de uma montra de uma loja. Acho que é do Alberto Pimenta. Mas não me lembro de mais pormenores, é tudo muito vago, já nem sei se inventei isto. Queria muito encontar o texto, se calhar tenho de fazer um anúncio para os classificados :D
Ou escreves tu o texto.
c disse…
A intenção é essa: descrever a montra da Casa Baviera na avenida da Boavista.

Queria ler o texto do Pimenta (se é que é do Pimenta, se é que existe) antes para decidir se me afasto ou aproximo do estilo.